Conheça “Valerian”, a HQ que inspirou Star Wars e virou superprodução
Novo filme de Luc Besson vem de um dos mais clássicos quadrinhos franceses
atualizado
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Quando fiquei sabendo que o tarimbado cineasta francês Luc Besson (de “O Quinto Elemento”) faria uma adaptação da clássica BD (“bande dessinée”, o jeito que os franceses chamam as histórias em quadrinhos) “Valerian”, fiquei um tanto surpreso. Primeiro, não imaginava que esse gibi teria apelo internacional em filme. Segundo, tendo lido “Valerian”, achava o conteúdo talvez infantil demais, meio incoerente. Será preciso resgatar a essência dessa mitologia fundamental dos anos 1970 para que o filme faça sentido em 2017.
Com o segundo trailer da superprodução (que chega ao Brasil em agosto), podemos fazer uma avaliação mais categórica. “Valerian e a Cidade dos Mil Planetas” procura lidar com o legado daquilo que de certa forma criou (especialmente “Star Wars”), tomando o cuidado de não parecer um reprocessamento infeliz de sua herança (como ocorreu com “John Carter: Entre Dois Mundos”).
O trailer apresenta um elenco de estrelas (Clive Owen, Rihanna, Ethan Hawke e até o jazzman Herbie Hancock), efeitos especiais acachapantes, a existencialista música “Because” (dos Beatles) e até ironias visíveis – um carro atravessando, de longe, num plano muito aberto, uma paisagem desértica, provocando “Star Wars”. A mensagem é clara: “Não somos a derivação, somos a fonte”.
Explico: “Valerian” foi publicado, primeiramente, em 1967, na revista francesa “Pilote”, um marco nas publicações franco-belgas de quadrinhos. Até então, o mercado era destinado a histórias exclusivamente infanto-juvenis (coisas como “Tintim” e “Smurfs”).
“Valerian”, criação do desenhista Jean-Claude Mézières e do roteirista Pierre Christin, era o primeiro empreendimento sério em ficção científica (inspirado em “Flash Gordon”, na francesa “Futuropolis” e em Júlio Verne) da HQ francesa moderna. O resto é história: de “Valerian” deriva não apenas o imaginário de “Star Wars”, como também toda a forte tradição do gênero francês. Coisas como Moebius, Enki Bilal e Phillippe Druillet.
A partir de 1970, “Valerian” passa a ser impresso em álbum (outra tradição franco-belga, o que torna cada quadrinho meio que um romance gráfico) e não parou até hoje, sendo a mais longeva publicação do tipo ainda feita pelos autores originais. Ou seja: é um peso-pesado dos quadrinhos mundiais. Nunca saiu no Brasil, mas pode ser lido em português pelas edições da Meribérica/Liber.
A narrativa dos álbuns acompanha dois agentes espaçotemporais (viajantes do tempo e do espaço), os jovens Valerian e Laureline, cuja missão é proteger Galaxity, uma megalópole hiper-moderna na Terra do século 28, capital de um grande império galáctico. No local, converge todo tipo de civilização alienígena, das mais avançadas às mais primitivas, numa grande comunidade galáctica, consolidando o gênero “space opera”.
Divertimento barato, epopeias antigas e visões utópicas
O filme será baseado em dois álbuns: “O Império de Mil Planetas” (1971) e “O Embaixador das Sombras” (1975), que fazem parte da fase madura da série. O primeiro é famoso por compartilhar muitos elementos com “Star Wars” (que seria lançado em 1977), como, por exemplo, Valerian “congelado” em plástico líquido (tal qual Han Solo em “O Império Contra-Ataca”).
O segundo, que deve ser a base do enredo do filme, mostra Valerian levando o embaixador da Terra a Alpha (ou “Ponto Central”, na HQ), um utópico porto-cidade no espaço responsável por coletar e gerir o conhecimento de todos os seres do universo.
Tive a oportunidade de ler três álbuns de “Valerian” (renomeado, a partir de 2007, “Valerian e Laureline”, fazendo jus à outra agente da série), entre eles “O Embaixador das Sombras”. Trata-se de uma HQ com forte ímpeto imaginativo e aventuresco, cheia de problemas de continuidade, mas encantadora na forma com que vislumbra diversas espécies alienígenas, tecnologias impensáveis e lindo design para seres e coisas.
Como em qualquer BD clássica, “Valerian” possui uma narrativa regular, com muitas falas e as enormes páginas dos álbuns divididas em oito ou nove quadros, deixando a experiência reta e propícia a leitores de todas as idades.
“Valerian”, efetivamente, não rompe fronteiras na linguagem das HQs, mas inova ao dar vazão a um universo multicolorido, com inúmeras possibilidades de abordagem, pensando as peripécias das epopeias antigas em um formato barato e ingênuo, com abertura para o sonho e visões utópicas do futuro da humanidade.
Até mesmo a nossa querida cidade de Brasília (com apenas 7 anos de existência) aparece no álbum “A Cidade das Águas Movediças” (1967), como centro congregador de líderes mundiais numa Terra pós-apocalíptica.
E é nestes dois pontos (um futuro “cool”, cheio de menções ao passado; e uma releitura da epopeia clássica), mais do que em referências pontuais, que “Valerian” tem seu dedo de influência no über-fenômeno que é “Star Wars”. Resta saber se o fenômeno é tão grande a ponto de “matar seu mestre” e “engolir seu pai”, ou se Luc Besson terá malemolência o suficiente para fazer a série emergir com brilho próprio novamente.