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O brasileiro cordial escorraçou os venezuelanos do país como uma praga

Encoleirados pelo coração, ele acredita que o país é uma extensão do seu lar. Daí, a dificuldade de entender uma Constituição laica

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venezuelanos imigrantes pacaraima roraima
1 de 1 venezuelanos imigrantes pacaraima roraima - Foto: Material cedido ao Metrópoles

Estamos em choque. Um misto de terror e piedade nos possui constantemente desde que o brasileiro cordial resolveu arrancar a máscara de certa afetividade com que se movimenta entre os corredores de casa e os palácios da cidade onde habita. Esse movimento não é recente. Talvez, agora, diante dos venezuelanos expulsos do Brasil, como uma praga ameaçadora, possamos compreender, em escala massiva, onde fundamos a nossa civilidade.

Em Roraima, houve quem decretou a morte do “Homem Cordial”, bem ali na região fronteiriça. Parecia queimar-se vivo junto aos pertences dos imigrantes, que, em êxodo, fugiram escorraçados, deixando no caminho a esperança de viver no Brasil vizinho. Nas redes sociais, ingênuas carpideiras digitais velaram o corpo. Aqui, jaz a hospitalidade. Aqui jaz a cordialidade. Aqui, foi enterrado o brasileiro tão cordial em sua essência.

Choram por uma morte morrida há 52 anos. Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, um clássico que deveria estar em sala de aula, acertou com um “tiro” a imagem desse brasileiro “bom” por natureza. Destruiu a ideia romântica do poeta santista Ribeiro Couto, que cunhou a expressão “Homem Cordial”. Para este, o brasileiro, transbordante de afetividades, era um por si um povo hospitaleiro, capaz de abrir as portas de sua casa para abrigar o estrangeiro nunca visto.

Ao contrário, Sérgio Buarque desfez o equívoco e decretou: a maior herança a ser deixada pelo Brasil ao mundo será a imagem do “Homem Cordial”, aquele que, como uma máscara, simula a gentileza para se manter diante e firme da sociedade reguladora. O povo que, em seu mecanismo de firmação, articulou esse fundamento quando se relacionava com estruturas rígidas de poder. Apropriava-se de um suposto carinho para circular por essas esferas de severidade.

O uso do sufixo ‘inho’ é uma chave para entender essa trajetória. Em bocas de oprimidos, o senhor patriarcal, que chicoteava e explorava a tudo e a todos, virava o amável ‘senhorzinho’

O cordial de Buarque inspira-se da raiz etimológica da palavra cordial (“o que vem do coração”). Na confusão de emoções, fundamos um mundo próprio onde público e privado confundem-se cotidianamente. Assim, os brasileiros expulsaram os venezuelanos pela fronteira, pois acreditam ser o Estado a sua casa. Foram tomados pelas pulsões do cordial-coração para exaltar o falso patriotismo.

Talvez nem imaginem que não defenderam o país nem cantaram o seu hino para celebrar a expulsão dos estrangeiros. Lutaram pelo que pensam ser deles. Nesse ninho reside o nosso ovo da serpente.

 

Essa confusão é pilar da nossa sociedade. Daí a dificuldade de muitos entenderem a esfinge do Estado Laico. Os brasileiros cordiais que têm a vida privada regida por escrituras sagradas debatem-se para estar em paridade com os demais cidadãos não-cristãos, todos sujeitos a uma Constituição acima da sua fé.

O “Cidadão do Bem”, alcunha em moda entre brasileiros que reduzem o Estado ao seu quarto de dependências, é extensão desse “Homem Cordial”. Encoleirados pelo coração, querem impor ao Estado suas crenças.

O “Cidadão do Bem” é um estágio posterior. É o Homem Cordial sem máscaras. Mesmo sendo cristão, defende a morte e ódio para os que não professam a sua fé. Mesmo defendendo um estado sem corrupção, mantém-se equilibrado entre o expediente de artimanhas do dia a dia. É àquele que põe o dedo em riste nas fuças nas mazelas políticas, mas ocupa sem dor na consciência a vaga mais próxima destinada aos deficientes.

O “Homem Cordial” que explodiu em ódio em Roraima é essa mutação de “Cidadão do Bem” capaz de jogar a mulher da sacada do prédio, de aplicar substâncias nocivas no corpo de suas clientes, de dizer “Deus é amor”, mas virar as costas ao próximo.

O “Homem Cordial” está vivíssimo e, como “Cidadão do Bem”, quer um Brasil para chamar de seu. Só seu

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