O pescoço da menina Ana Íris tem as digitais do Brasil machista
O modelo da escola brasileira não pode lavar as mãos e deixar que as famílias se resolvam
atualizado
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A morte de Ana Íris, uma criança de 12 anos, ainda dói no nosso peito. Uma menina cheia de sonhos. Quem a conheceu fala de doçura, de inocência e de muitos planos a serem realizados na vida. Vida? Tão fragilmente interrompida, sem defesa, por mãos trêmulas de desejos doentios impostos à força.
No pescoço da menina Ana Íris, além das digitais do primo ensandecido pelo sexo, há as marcas do machismo de um Brasil que reluta em ensinar as suas crias que não podemos mais coexistir numa sociedade educada a violentar a mulher, em qualquer idade. Feminismo? Dirão os odiosos de plantão. Não. É conhecimento, que salva, ilumina e transforma pessoas preconceituosas em humanos.Precisamos encarar que todos somos corresponsáveis pela morte de meninas, de mulheres e de idosas violentadas por homens.
O corpo da menina Ana Íris, “que ainda não tinha virado mocinha”, como declarou a mãe ao Metrópoles, foi massacrado por um protótipo do menino-macho brasileiro, que aprende desde cedo a ser predador.
Estamos falando de uma “cultura de estupro”, muitas vezes, ensinada de forma tola nos pátios das escolas e nos sofás das casas. Consolidada em diversos segmentos de um Brasil que se orgulha em violentar as suas mulheres. Uma vergonha para uma nação tão jovem que chega à segunda metade do século 21 com tanta desigualdade.
Meninos bem-educados ou analfabetos estão sendo criados para assediar as “novinhas” em quaisquer circunstâncias da vida. Desejá-las desde que o corpo de menina se transforma em mulher. Das estudantes às estagiárias, não importa a fase. O que vale é babar o desejo desenfreado diante do que considera “presa”.
A velha, doentia e assassina “cultura do estupro” instala-se nesses olhos sedentos de lobos, que se alimentam da lógica machista e sexista de transformar o corpo da menina-mulher numa lebre a ser abatida na primeira distração. É a máquina que produz programas erotizados de segunda classe nas televisões sem ética, compõe músicas que fazem da menina um objeto, cria danças que exploram sensualmente o corpo que ainda quer brincar de ser criança.
A cultura do estupro é uma doença que se propaga desde quando o menino se desabrocha para o sexo. Sem qualquer educação, essa fase do descobrimento é largada ao deus-dará nas brincadeiras de ruas ensinadas por “professores” machistas da vida. Se antes os pais levavam o menino-macho para aprender com as prostitutas, hoje os lançam à caça das filhas dos outros.
Somos um país com modelo de escola sem educação sexual, que não ensina a importância de respeitar o corpo alheio, de esperar o encontro natural do sexo desabrochar. É importante explicar o porquê do “não é não” e “do meu corpo, minhas regras”, tão caros ao feminino.
É urgente conscientizar os futuros homens que a mulher decide a hora, o lugar e o momento que vai dividir o seu corpo com o outro que ela desejar.
O modelo da escola brasileira não pode lavar as mãos e deixar que as famílias se resolvam. Alguns pais e mães não têm a mínima condição cultural para enfrentar esse compromisso primordial de educação. Estão presos em religiões e dogmas que nutrem a vergonha do próprio corpo nu e fazem do sexo um ato pecaminoso. Se não sabem lidar com o próprio corpo, como vão educar as filhas e os filhos?
Não à toa a arte brasileira tem sido massacrada neste país que não consegue diferenciar o corpo despido de um artista da nudez erótica e ameaçadora do estuprador. Em pleno 2017, co-habitamos com Brasis imersos na escuridão, quase do tempo de outrora, em que o sexo era feito com as luzes apagadas porque ver o corpo do outro desnudo e desejoso era pecado mortal.
Tudo parece esquizofrênico. Uma esquizofrenia que mata. Mata a menina Ana Íris, mata a mulher de 20, de 30, de 40, de 50, de 60. Violenta todas as idades porque não há educação para o menino brasileiro se tornar um homem que respeita o corpo feminino. O corpo feminino nu, o corpo decotado, o corpo vestido como quiser se vestir.
Até quando vamos perder as nossas meninas para esse Brasil machista e arcaico? Não é tornando a escola num território oco e desprovido de uma conversa olho no olho. É tendo a coragem de admitir: não podemos mais perder vidas como a de Ana Íris. Somos todos responsáveis.