Raio-x da Quituart: como comer bem na praça gastronômica do Lago Norte
De locais tradicionais a novidades, o espaço reserva ótimas opções aos comensais
atualizado
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Idosos, levantadores de copos, jovens pais e mães puxando carrinho de bebê se enfurnam sob o telhado de zinco, que nos dias quentes não ajuda a espantar o mafuá do galpão encravado sobre o chão de cimento batido onde é possível se encontrar algumas das melhores receitas da gastronomia brasiliense, a feira da Cooperativa dos Artesãos Moradores do Lago Norte, a Quituart.
Refúgio de gourmands e boêmios, o local vive talvez seu momento mais próspero em termos gastronômicos. No entanto, ainda não espantou o mau agouro das décadas de um imbróglio judicial que a faz funcionar três décadas em casa improvisada, no canteiro central entre a QI 9 e a QI 10 – a erosão no terreno vizinho, onde originalmente funcionava, revela a cicatriz dessa disputa imobiliária.
Há, ao menos desde 2015, uma promessa de que a feira se instalaria num endereço definitivo, mais amplo e confortável para o público – incluindo moradores desafetos do centro de alimentação, que se opõem à extensão dos limites da Quituart até muito próximo à pista.
A disputa segue seu curso mas o centro comercial nunca fora tão prolífico em diversidade gastronômica. O artesanato perdera espaço para os negócios de alimentação ainda no início da história da praça, que só do ano passado para cá já viu abrir três novos boxes de comida boa, o Box 24, o Road Burger (no lugar do Tia Maria) e o Esquina Paulistana (no lugar do Entre Amigos).
Na Quituart há dois tipos majoritários de público a ocupar as noites de quinta e sexta e as tardes de sábado e domingo da feira: os cativos, que provavelmente já sabem o que vão comer e onde pedirão o chope; e os acidentais e curiosos. Estes últimos chegam ali por um prato ou um box específico, mas entram em parafuso diante da enorme variedade.
E daí que surgiu a ideia de fazermos aqui na Prato Feito, do Metrópoles, o que chamaremos de raio-x da Quituart. São 25 boxes vendendo comida (e outros poucos dedicados ao artesanato e outras coisas).
Desses, há alguns que não vamos nos deter: Cantinho da Roça, uma loja de queijos e embutidos; Armazém Aliança, de artesanato que mal ou bem serve alguma comida (há uma razoável salteña, espécie de empanada boliviana); a estreante Esquina Paulistana (cujo o cuscuz precisa de muitos ajustes, a começar pela retirada da desprezível ervilha de lata); e Quindins, Quindões e… Suspiros de Marilene, uma confeitaria dedicada exclusivamente aos produtos estampados no título.
Há outros também que, infelizmente, não passam pelo crivo da nossa curadoria, baseada tão somente dos faustos culinários de cada box. E por isso haverá uma ou outra ausência na lista. Mas não propomos também um ranking. O objetivo aqui é apontar o que há de melhor dentre os mais interessantes boxes.
Confira, em ordem alfabética, e seja bem vindo ao traço identitário de cultural da gastronomia bairrista do Lago Norte onde também temos descoberto alguns dos melhores achados do Distrito Federal.
Araratuba
Este é um dos boxes mais tradicionais da Quituart. Aliás, por muito tempo era a grande referência. Um cardápio no qual constam pratos muito saborosos e tecnicamente bem executados, caso da leitoa à pururuca ao estilo caipira com tutu e couve. Armando Rampani, fazendeiro paulista, cuida da produção vinda da roça para a mesa, ao lado do filho Daniel.
Embora a leitoa seja o prato ícone da casa, um dos mais interessantes surge com o marreco ao molho de laranja, feito em panela de barro e servido com a carne tenra, arroz, purê de batata e pera. Há uma paleta de cordeiro ao vinho que também faz sucesso e um frango recheado que, quando provei, estava um tanto quanto ressecado.
Beco do Chopp
Como todas as demais casas, se você for fazer um pedido na hora do “rush”, ali por volta das 13h, o serviço pode ser moroso. Marcio Olivieira, à frente deste botequim, tem um trabalho a mais que é o de manter o chope Brahma girando. Não sou lá o fã da marca até pouco tempo onipresente nas torneiras de Brasília. Mas tem seu lugar e hora para abastecer a boemia local.
O bacana da casa, para além dos tantos petiscos tradicionais (de filé à palito a fígado com jiló), é o bom pastelzinho de massa de angu recheado com carne moída. Bem mineiro mesmo.
Beit Kahama
Este restaurante árabe comandado por Luciene Silva é um dos precursores da Quituart. O quibe, receita de família, me parece um dos mais bem elaborados da cidade, onde o padrão são salgados farelentos e ressecados. Beit Kahama está acima da média.
Não faz ali meu babaganush favorito, mas no que tange a cultura sirio-libanesa, presta boa reverência com seu cordeiro ao molho de hortelã e com o arroz de mjadra (com lentilhas).
Box 24
Um dos estreantes da Quituart, o Box 24 é comandado na verdade por um veterano do boteco. Tonico Lichtsztejn une aqui duas facetas pelas quais se fez conhecido: os ótimos petiscos de botequim e o costelão assado com verduras.
A costela, de corte janela (paralelo ao osso), não leva o tempero padrão gauchesco que tanto conhecemos. Aqui há um certo refinamento no trato que resulta na valorização da matéria-prima e do processo técnico do assador. Só não deixe de provar o bolovo e a porção de croquetes de carne de panela empanados em bagaço de malte. Um bom lugar para tomar chope também.
Butiquim do Tuim
Marco Túlio, o Tuim, é uma das notórias lideranças da cooperativa. Acho os torresmos dele (a barriga pururucada do porco) saborosíssimo. Mantenho minhas visitas ocultas, mas fui descoberto e ele me abordou querendo chamar atenção para o cardápio de refeições que serve ali também.
Na base do sincericídio, como sempre o faço, me comprometi a provar algum dia (de preferência sem que ele soubesse) mas que só recomendaria se fosse de fato recomendável. Bem, há um filé a cavalo no menu. Bem temperado, gema mole, mas ainda fico mais com o torresmo e o chope por aqui.
Café Predileto
Este box serve basicamente toda a feira. Explico: afora a pequena loja de quindins suspiros e o tiramissu do Il Basílico, se você quiser uma sobremesa, um café, um suco da fruta ou um picolé, o Café Predileto será seu destino.
Dispenso o expresso, mal tirado em máquina semiprofissional. Mas me deleito na torta banoffee, clássico da confeitaria inglesa: massa amanteigada, doce de leite (no lugar do caramelo de manteiga do original), chantili e banana, com raspas de chocolate por cima. Açúcar equilibradíssimo e temperatura correta. Deve-se solicitá-la logo cedo, senão fica sem. Na falta dela, há um pudim de claras sensacional para socorrer.
Casa Vale Gastrobar
Da primeira vez que comi por aqui, logo quando inaugurou, há um par de anos se não me engano, a cozinha ainda não tava bem ajustada e o conceito foi um tanto complicado de compreender. Em uma nova chance, descobri atributos interessantes desta empreitada que mistura pratos e técnicas da cozinha europeia tradicional com uma culinária baiana um tanto adaptada.
O acarajé continua apresentando uma massa um tanto áspera e com deslizes no cozimento. Agora, o arroz de hauçá é uma beleza. Raro de se ver por aqui, a receita desenvolvida a partir das origens africanas do povo negro da Bahia leva o grão com um refogado de carne-seca (aqui com carne de sol) mais um refogado de camarão seco – sim, o “surf-and-turf” do nosso continente-mãe já existia tempos antes da moda da cozinha continental norte-americana.
Chucrute
Um clássico restaurante alemão, sem muitas concessões e com um chucrute muito bom, com forte acidez (como deve ser). Não há nenhuma grande invencionice neste box clássico da Quituart. Meu pedido aqui? Chucrute Garni.
Não está no menu. Embora o prato consista em basicamente um grande exemplar de tudo que há do basicão germânico do cardápio: joelho e bisteca de porco defumados, salsichões, batata e chucrute, claro (R$ 130, para umas quatro pessoas).
Das Minas Gerais
Seu Moura mantém este box com uma equipe de cozinheiras de mão cheia para o tempero da cozinha caipira mineira. Há um tanto de generalidades no longo cardápio. O grande feito, embora muita gente vá para o mexidão ou frango com quiabo, é mesmo a galinha cabidela. Molho de sangue superbem emulsionado na gordura, espesso e saboroso. Vem com um angu razoável, um tanto insosso, arroz e tutu (R$ 89, para três).
Il Basílico
O italiano da Quituart. Pertencia a dois conterrâneos da Bota, mas agora ficou na mão de um só deles. Vi ao longo dos quatro anos de operação a qualidade dar uma balançada. Mas a casa continua a usar massas secas de boa qualidade, de origem italiana, e a produzir um bom pappardelle ao molho funghi. Para quem busca comer carbonara de verdade por aqui também encontra. Não é dos melhores do nosso mercado, mas faz jus à simplicidade eufórica da receita original.
Jamburanas
Este é um dos meus cantos favoritos da Quituart. Devo ter percorrido todo o cardápio das meninas que fizeram o esforço de dar à comida paraense um lugar de nobreza sem gourmetização tola e concessões no uso do tucupi e do jambu. Patinhas de caranguejo, pasteizinhos de jambu, um bom tacacá e um indefectível pato no tucupi, daquele bem raiz.
O toque gourmetizado aqui cai bem, apesar de historicamente torcer o nariz. Adoro o risoto de pato com o pesto de jambu servido por elas. Não deixe de visitar a carta de drinques.
Le Birosque
O box fundado em 2015 pelo chef Luiz Trigo se tornou a estrela da Quituart ao servir sua magnânima e cenográfica porchetta. A barriga marinada, temperada com ervas e assada por longas horas antes de ser pururucada, é fatiada em porções generosas. Depois, deita-se sobre uma tábua de madeira natural rústica ao lado de uma polenta cremosa bem temperada com uma espécie de gremolata por cima.
Trigo conferiu ao porco lugar nobre nesta “birosca”. Além da peça central, o cardápio na sua integridade é digno de passeio: arroz de suã, arroz de puta rica, a saborosíssima bochecha de porco ao vinho (com a mesma guarnição da porchetta) e um rosbife em tiras sob minifolhas que abre o apetite de qualquer um.
O Realejo
A marca veio antes do box na Quituart. O charcuteiro e chef Eduardo Seddelmeier já vendia seus famosos patês e terrines por aí há uns sete anos. Aqui, você encontra os bons preparos campestres à francesa no couvert de entrada (R$ 30). Indispensável.
Não sou fã da textura do tartare de filé dele, batido demais e um tanto desequilibrado na acidez do tempero. Agora, finalmente temos um ótimo beouf bourguignon na cidade. Peça sem medo o ensopado clássico de carne ao molho de vinho com verduras (R$ 95, para duas a três pessoas). Uma adaptação conveniente (e que funciona muito bem): farofa de banana acompanhando.
Oasis Sabor Nordestino
Casa das antigas da Quituart que, junto com o Art-Gula (não mencionado), serve uma comida brasiliera basicona. Este costuma ser bem mais eficiente, pela qualidade da carne de sol, sobretudo. Servida na chapa, pode vir com macaxeira e arroz. Uma opção para quem busca cardápios mais conservadores.
Road Burger
Ao lado do Esquina Paulistana, é um dos estreantes. Não dava muito para a casa até resolver morder um hambúrguer clássico que eles servem por lá. Tudo certo: brioche fofo chapeado, blend temperado na medida e servido ao ponto e uma maionese dispensável, com muito açúcar. Era preferível recorrer aos molhos americanos agridoces mais tradicionais, por exemplo.
Sabor Mar
Numa terra tão pouco favorecida para negócios no ramo de frutos do mar, este box muito tradicional da Quituart se mantém fazendo o simples. Poderia recorrer a ingredientes de melhor qualidade (embora reconheça a dificuldade), mas aqui se pode experimentar um bobó de camarão bem feito.
Sol Nascente
O nissei Couki Watanabe começou vendendo sushi na feira da Ceasa e foi um pioneiro da cozinha japonesa na ainda desassistida região norte do Plano Piloto. Embora os sushis aqui já não tenham lá muito padrão (de corte, temperatura e moldagem), eis um belo lugar para comer yakissoba japonês, tal como deve ser: macarrão com carne e verduras chapeado e servido sem molho, com massa ainda um tanto firme (ao contrário dos exemplares genéricos chineses servidos em Brasília).
Tia Rô Culinária do Sertão
Este é o lugar que me leva de volta para Aracaju. Apesar de ter pegada paraibana, Tia Rô faz um cozidão nordestino do jeito que sempre comi em casa. É o caso da madeleines de Proust, atualizados pela cultura pop com a cena de Ratatouille em que o crítico Anton Ego prova o prato-título, elaborado pelo ratinho. Se quiserem me comparar a Anton Ego, eis meu ratatouille: o cozidão de costela com verduras da Tia Rô, guarnecido devidamente de um pirão puxado na pimenta.
Toca do Chopp
Clássico absoluto de boteco da Quituart, a casa do chef Claude Capdeville já era ponto de encontro de uma das turmas que hoje tem contribuído para repaginar a cena gastronômica brasiliense: Gil Guimarães (Baco), Luiz Trigo (Le Birosque), Tonico Lichtsztejn (Box 24) e Leo Hamu (Ceasa). Mas em algumas vezes que visitei o estabelecimento no ano passado, parecia um tanto abandonada. Faltava chope, torresmo e nunca conseguia achar os tão afamados pasteis.
E quase que a Toca, logo a Toca, não entra no corte final desta lista. Não fosse a recente mexida no menu, que trouxe um joelho de porco defumado assado com batatas igualmente braseadas sob a gordura que respinga do corte suíno. Mas o bom mesmo aqui é sentar com o chope (Brahma, é o que tem) e ficar beliscando o jiló recheado com pancetta tostada crocante e geleia de jabuticaba.
Quituart
Quinta e sexta, das 18h às 23h; sábado e domingo, das 11h às 16h. Mais informações: www.quituart.com.br