Cerrado no Prato: a gastronomia que revolucionará a mesa brasiliense
O livro, que teve suas receitas elaboradas em jantar, reúne chefs da cidade dispostos a explorar nosso bioma
atualizado
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Parte do esforço em se conferir alguma identidade para uma possível gastronomia brasiliense ancora-se no uso de ingredientes locais e passa pela pulsão criativa. No entanto, de nada vale o esforço intelectual e artístico, a dedicação exaustiva na busca de um perfeccionismo técnico se as ideias não forem materializadas ou viabilizadas comercialmente. Essa é uma das premissas observadas no livro digital Aqui Tem Cerrado no Prato, organizado pela chef e professora de gastronomia do Instituto Federal de Brasília (IFB) Ana Paula Jacques, lançado em formato digital.
Editorialmente modesto, a começar por não ser editado (ainda) fisicamente, o livro consolida um manifesto somado a uma experiência gastronômica. Ou seja, a militância que grita e trabalha em favor da preservação do bioma do Cerrado, onde o Distrito Federal se insere, propõe de forma prática uma cozinha brasiliense. Ou melhor, cerratense, uma vez que perpassa os limites dos traços de Lucio Costa, para muito além inclusive de Goiás e de Minas Gerais.
Na última semana, nove das receitas que constam no livro foram colocadas à prova em um jantar promovido no simbólico Aquavit, restaurante catalisador da abordagem contemporânea à cozinha regionalista brasileira no DF. Foi o chef dinamarquês Simon Lau Cederholm, à frente dessa premiada inciativa dentro de sua própria casa no Setor de Mansões do Lago Norte, que no início dos anos 2000 incorporou insumos do Cerrado testando limites e misturando-os a técnicas da cozinha europeia e dos saberes e técnicas regionalistas (sobretudo das cozinheiras da Cidade de Goiás).
O Aquavit, guardada todas as proporções, sem exagero e sem síndrome de vira-latas também, criou em Brasília um impacto semelhante ao que fizera o mítico El Bulli mundialmente. Ambos restaurantes encerraram suas atividades comerciais, mas mantiveram o espírito perene. Ao se unir a outras iniciativas e se deixar absorver pelo manifesto do Cerrado no Prato, o Aquavit, personificado em Simon Lau, ganha uma nova dimensão.
Independe agora se o restaurante será reaberto ou não per se. Foram 10 anos de atividade e uma desgastante queda-de-braço com órgãos de fiscalização operando seletivamente e sob legislação antiquada para o setor de alimentação. Em seguida, uma tentativa frustrada de reviver na Casa de Chá do Jardim Botânico. Enfim, o Aquavit transcende sua missão original, sobretudo ao sediar o jantar Experiência Cerrado, no qual foram testadas versões reduzidas dos pratos reunidos no livro, sob a curadoria de Ana Jacques.
Pode ser que haja uma nova edição do menu degustação, mas é certo que há um esforço para levá-lo a São Paulo, dentro do Mesa Tendências, e alguns dos chefs incorporaram os pratos ao menu de seus respectivos estabelecimentos (considerando a sazonalidade dos produtos).
Na feira da Ceasa, por exemplo, já se pode degustar as almôndegas de lata produzidas com carne de porco caipira e conservadas em banha suína pelo charcuteiro Leo Hamu. Basta procurar a barraca dele por lá. No livro e no jantar, as bolinhas carnudas, um tanto salgadas em excesso, compõem com favas refogadas com cebola fatiada, misturadas a mangarito (raiz típica do Cerrado) e folhas cruas de ora-pro-nóbis. Um sabor intenso e suave ao mesmo tempo.
Marcos Lélis, professor de cozinha brasileira e internacional no Iesb, reúne no prato elementos do nosso imaginário religioso-cultural com técnicas orientais. Um dos preparos mais elementares, mas também de maior pujança dentre os relacionados. Há uma pamonha cremosa, receita clássica do repertório junino, mas sem o cozimento completo, com bacon esfarelado e um levíssimo e supercrocante tempurá de folhas de ora-pro-nóbis.
Mara Alcamim, do Universal Diner, também aparece no livro com uma pamonha – a chef estava fora da cidade e não participou do jantar. O prato, contudo, consta no menu do seu restaurante como petisco: servida frita com creme de pequi para mergulhar.
Um dos chefs mais importantes para a aproximação do cliente com as raízes regionalistas e também com o produtor local, Francisco Ansiliero não poderia ficar fora. Em seu Dom Francisco, serve o saboroso prato que consta no menu, mas respeitando a sazonalidade. Trata-se de um nhoque de mangarito, cuja textura mantém boa proximidade à massa original à base de batatas, mas com a acidez peculiar à raiz do Cerrado. As bolinhas cozidas levam apenas a clássica combinação italiana de manteiga com sálvia.
A líder do projeto, Ana Jacques, apresenta um esforço mais detido em valorizar a produção da comunidade quilombola do norte goiano. De lá, traz o arroz crioulo, muitíssimo saboroso, quebradinho no pilão conforme a técnica preservada pelos kalungas. O arroz é servido com galinha caipira desfiada, num molho muito rico de pequi, com base francesa. Em cima do mexidinho, orna-se com uma gema curada.
Disponível em menu especial do Oliver, Diego Badra apesenta a costela do seu Zé. É como se fosse uma alusão ao ragu com polenta mole italiano. A costela em molho de cerveja escura, rende-se ainda a uma construção muito clássica de sabores (cerveja, fundo de verdura e molho de tomate). O Cerrado aparece na castanha-de-baru salpicada por cima e na cama de purê de mangarito por baixo, que demonstra não apenas a potência do produto como sua versatilidade no uso convencional.
Em seguida, o chef Leandro Nunes (ex-Jambu e ex-Leo) apresenta um peito de pato curado bem aromático, que já vinha praticando em seus restaurantes. O prato tenta superar o desafio de introduzir (ou melhor, reintroduzir) o jatobá na mesa brasiliense. Um molho amanteigado feito com o interior da baga do fruto esfarelento mistura-se a um neutro purê de mandioquinha e pétalas de cebola queimada.
Simon, o anfitrião, ateve-se a uma receita de pré-sobremesa, que no dia-a-dia pode ser encarada como um típico lanche ou mesmo sobremesa. Queijo tomme com uma bela casca tostada servido com sua já famosa compota de cajuzinho-do-mato. Suspeito que a calda não tenha levado tempo suficiente. Ficou devendo aquele amargor do processo de caramelização.
Nas sobremesas, há uma do chef André Castro (Authoral) que replica a pastelaria francesa numa massa choux com uma crocância saborizada com maracujá pérola por cima, recheio de creme diplomata com baunilha do Cerrado e cubos da marmelada de Santa Luzia, produzida no Quilombo Mesquita. Reúne as sutilezas de ingredientes do bioma, mas sobressai a confeitaria francesa.
A conceitual sobremesa de Lui Veronese (Sallva), não por acaso intitulada Tributo ao Cerrado, me parece um fenômeno à parte. Da aparência monocromática simbolizando uma das maiores queimadas do Parque Nacional de Brasília, inicialmente vemos apenas farelo, como que de chocolate.
Uma pequena escultura de chocolate retorcida em alusão às árvores locais está fincada num chão arenoso que, ao tocar no paladar, traz sabores sutis de pequi, de maracujá pérola, de cajuzinho do mato, tudo misturado como que se fosse apenas cacau. Isso até se desvendar um sorvete de cagaita escondido sob as cinzas. De fato o jovem Veronese apresenta aqui a essência do Cerrado: uma paleta absolutamente diversa de sabores sob o manto da aridez do imaginário da seca, fazendo frente, com resiliência, aos efeitos da destruição progressiva do bioma.
Este é o efeito real, prático e necessário que a gastronomia brasiliense precisa encontrar e que o livro proporciona como uma convocação geral de alerta ao meio ambiente e de possibilidades para o setor. Uma revolução na nossa cozinha, contudo, só virá fisgando ao final o empresário do ramo e o cliente acomodado na tendência do momento. Esses são os atores da cadeia produtiva gastronômica que precisam se convencer e se orgulhar da riqueza do Cerrado até que deixem de fazer cara feia para o insumo local, os aromas e a tão bela e espontânea flora urbano-silvestre do nosso território.
Aqui Tem Cerrado no Prato
Baixe o livro digital no site https://cerradonoprato.com/.