Veja peça por peça o processo de construção de Gisele Camargo
As pinturas estão em cartaz na Alfinete Galeria até 12 de maio
atualizado
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Gisele Camargo tem um projeto que vem lhe ocupando os dias. Pintar 170 telas de uma mesma série chamada Construção. Cada uma delas com o objetivo de ser vendida para que ela possa, ao fim das vendas, levantar sua residência artística na Serra do Cipó, Minas Gerais.
As primeiras 60 dessas pinturas estão em cartaz na Alfinete Galeria até 12 de maio. Gisele não pretende exibir o restante de Construção em outros lugares. Sua ideia é aproveitar os contatos que amealhou em duas décadas de trajetória e, claro, as três galerias que a representam: Luciana Caravello no Rio de Janeiro, Central em São Paulo e Periscópio em Belo Horizonte.
O terreno na Serra do Cipó está escolhido. E o projeto da residência está desenhado. O orçamento com a palavra dos construtores já foi comprometido. Gisele vendeu o apartamento no Rio de Janeiro, sua cidade natal, e se mudou para lá. Vivendo de aluguel nos últimos dois anos enquanto arrematava os planos para a mudança definitiva.Agora se lança à parte derradeira de sua aventura: pintar as telas de Construção – uma por uma – para poder vendê-las – uma por uma – e assim levantar o sonho da residência artística financiada com seus próprios recursos.
Estas telas em cartaz na Alfinete, o galerista Dalton Camargos foi buscar pessoalmente ao lado de seu assistente, Renato Lins, numa Fiorino. Setecentos quilômetros separam Brasília do vilarejo de Serra do Cipó, que serve de porta de entrada para a região que encanta Gisele, não muito distante de Belo Horizonte.
Construção, o nome desta série, explica Gisele Camargo na noite de abertura da exposição, tem a ver com aquele conto de homônimo Franz Kafka, tem a ver também com a obra que ela quer erguer na Serra do Cipó e, claro, tem a ver com o lento e inarredável processo que cada artista encara diariamente diante do próprio ofício.
“Para mim, este trabalho não tem paralelo na minha carreira, esta é a primeira série que eu faço com um fim bem específico”, diz Gisele, se referindo à proposta que originou Construção, a ideia de comercializar diretamente o produto de seu trabalho diário para poder financiar sua residência. “Isso me lançou numa paranoia. Mas a partir da própria ação você começa a criar umas maluquices para dar continuidade à série.”
No texto de Kafka, o narrador – um homem? um bicho? – se embrenha numa toca e ali se mete num furor de construir uma casa que mais parece um labirinto ou uma fortaleza em que precisa se proteger de algo ou alguém na certeza da iminência de um ataque externo.
“Começar com um buraco, como Kafka, e, quando estiver cavando, ir descobrindo o que está escondido ali. Comecei com uma lua, que se tornou uma segunda lua baseada em contrastes de cor, encontrei assim uma forma que se relaciona mais diretamente a mim, a trabalhos anteriores que eu já tinha feito antes, então relaxei, e fui liberando. Foi de fora para dentro.”
A lua tem a ver com as caminhadas que Gisele faz na Serra de Cipó nas noites de lua cheia. Ela se deu conta de que a vida no mato a apresentou não apenas à toda natureza ao seu redor – mas também ao céu sobre sua cabeça. O céu como “uma massa sólida, imensa”, ela define, em termos mui caros ao seu labor como pintora.
Antes disso, quando ainda morava no Rio de Janeiro, ela conta que a intensidade da cidade lhe roubava a natureza e lhe roubava até mesmo a noção de existir um céu. Foi uma viagem à Argentina ao lado do amigo Matheus Rocha Pitta, em 2015, que fez Gisele se dar conta de que precisava deixar a cidade. Eles cruzaram o deserto da região de Mendoza, aos pés dos Andes. “Eu tive a sensação de querer virar paisagem, querer virar pó.”
Veio então uma lembrança de juventude, uma viagem para a Serra do Cipó, quando ela tinha 23 anos de idade e ali chegou numa noite de lua cheia e sentiu algo que nunca sentira antes – sentiu o cheiro do mato.
“Assim que me mudei pro Cipó, minha paleta de cores mudou imediatamente. Eu sempre pintei arquitetura, e também ficou claro ali que meu interesse não era pela arquitetura, mas pela paisagem em si. Todo esse tempo, minha pintura ia para lugares remotos: eu pintava cantos de prédios, nunca eram construções exuberantes, monumentais.”
O trabalho em ateliê está muito mais difícil para Gisele nos últimos dois anos, desde que trocou o Rio de Janeiro pela Serra do Cipó. Porque agora ela quer conhecer todos os cantos da região. Precisa muita disciplina para ficar em casa e dar conta do que se propôs a fazer.
Além dessas 60 pinturas, ela entregou dois trabalhos site specific sob encomenda de um colecionador brasiliense. E ainda finalizou duas pinturas da série Brutos – com espessas pinceladas de tinta óleo sobre fundo chapado de esmalte sintético – a tempo da SP Arte, a grande feira que movimentou o cenário nacional no mês passado.
“Desde que me mudei para lá, meu trabalho mudou radicalmente. Os Brutos vieram com muito mais força. Quando entra a tinta a óleo, entra uma liberdade que há muito eu não conhecia. Mas mesmo na Construção, mais contida, mesmo nela estou me jogando muito mais. Porque quis trazer outra coisa pro meu trabalho, que fosse menos intelectualizada. Estudei muito filosofia, em paralelo com a faculdade de Belas Artes. Isso já está tudo aqui dentro de mim. Agora precisava de um novo encontro.”
Um encontro com a cor. Construção logo se revelou para Gisele como um exercício de cor. Que a ela interessava se familiarizar com as cores que a Serra do Cipó estava a apresentar a seus olhos. Daí tratou de encontrar cada tom exato e, num trabalho minucioso, emprestar um pouco de cinza, modulando contrastes mínimos, um pouco de cinza a cada vez, lentamente modificando a cor original.
Construção se trata de um movimento de cor, fica evidente quando as sessenta peças se encontram juntas e aprumadas na parede da Alfinete Galeria. Mas a expografia, esse mapear das telas, veio apenas num segundo momento para Gisele, ainda lá na Serra do Cipó, quando ela foi encaixando e reencaixando as peças.
“Quando vai mudando a paleta de cor, a forma muda, e então vou mexendo essa forma. Isso é meio básico de grande parte dos artistas: começar a brincar com alguma coisa e desenvolver essa coisa até onde der. Aqui fui mexendo com forma e cor. E fui agregando coisas e para ir andando, para virar uma construção mesmo.”
Um amigo chegou a enxergar árvores, conta Gisele, apontando uma área ali no centro do conjunto, quando o verde empresta uma luz ao todo. Mas ela não subscreve leitura alguma – ao mesmo tempo que legitima todas. “A viagem é de cada um.”
No entanto, saiba o prezado espectador, é preciso muito controle e muito estudo para poder chegar a esse grau de abertura. Gisele Camargo é apaixonada por cinema, em especial por Andrei Tarkovski, sujeito que herdou toda uma gramática de cinema soviético e a resolveu de seu jeito – trabalhando sob a plástica e o tempo.
A obra de Gisele Camargo já foi comparada à linguagem do cinema, e quando ela pensa nessa aproximação, ela acredita que isso se deve muito à influência de Tarkovski, que trabalhava a composição de cada fotograma como se fosse uma obra única e individual, mas sem nunca se esquecer de que estaria ligada a uma cena, a um conjunto, que também tem seu ritmo e sua harmonia.
“Essa noção já está muito dentro de mim. E aqui aconteceu de forma natural. Vou passando de uma cor para outra e vou agregando uma terceira cor, agregando um outro elemento. Mas como a coisa vai acontecendo lentamente, tudo isso vai se fundindo também. Então quando você junta essa galera toda, você vê que a última se conecta com a primeira e faz um filme.”
Além de Construção, outra obra de Gisele Camargo pode ser vista pelos brasilienses. A Capital (2011) integra a mostra coletiva Contraponto, que teve temporada estendida no Museu Nacional Honestino Guimarães até este domingo 29 de abril.
Hoje fazendo parte do acervo do colecionador brasiliense Sérgio Carvalho, A Capital é momento marcante dentro da trajetória de Gisele. Originalmente concebida como site specific, trata-se de uma instalação pictórica que dialoga com a arquitetura de duas formas – ao ocupar seu lugar no espaço expositivo e, dentro da própria composição, ao representar pictoricamente construções arquitetônicas.
O uso de diferentes materiais (tinta óleo, acrílica e esmalte sintético, além de grafite) e de diferentes técnicas de aplicação se somam para criar os planos e os fundos nessa construção essencialmente pictórica de Gisele Camargo.