Um rolê com Jean-Michel Basquiat por cinco de suas pinturas
As obras do pintor nova-iorquino estão em exposição no CCBB Brasília
atualizado
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Jean-Michel Basquiat (1960-1988) ocupa um espaço central na arte contemporânea. Absorveu séculos e séculos de história da arte e soube sintetizar e devolver o que aprendeu através de uma expressão ao mesmo tempo fortemente individual e perfeitamente sintonizada com sua época e seu lugar. Numa curta carreira de sete anos, construiu um corpo de obra notável por seu impacto e sua duração – cujos ecos podem ser sentidos ainda hoje, não apenas na pintura, mas mesmo na arte de rua, no cinema e no comportamento de certa juventude urbana.
Figura romantizada por diversos fatores, Basquiat de fato cumpriu trajetória muito própria. Filho de um contador imigrado de Porto Rico e de uma dona de casa de origem haitiana, foi criado no bairro do Brooklyn, entre a larga coleção de discos de jazz de seu pai, e desde cedo entretido por passeios frequentes a museus e galerias de arte ao lado de sua mãe.
Já adolescente, fugiu de casa para começar a criar uma auto-mitologia, grafitando com o parceiro Al Diaz os muros estrategicamente próximos aos endereços mais badalados do circuito de arte nova-iorquino na virada para os anos 1980. Logo foi descoberto e muito estimado por galeristas, marchands e colecionadores. Mesmo cortejado pelo grande mundo, nunca perdeu de vista a questão racial, não esqueceu suas origens, jamais abrandou o viés político e contestatório de seu trabalho.
Um bocado da vida e da obra deste artista está na vasta mostra retrospectiva Jean Michel Basquiat que o Centro Cultural Banco do Brasil abriga até primeiro de julho. As mais de oitenta peças em cartaz vêm todas da coleção particular de Yosef Mugrabi, industrial israelense de origem síria.
E aqui a coluna Plástica aponta cinco obras, em particular, para ilustrar alguns interesses e procedimentos recorrentes em Jean-Michel Basquiat…
Menino Jean-Michel, contam os estudos biográficos, copiava com lápis de cor os desenhos animados que assistia na televisão. Aos sete anos de idade, ele ganhou outro tema. Foi atropelado e teve que ser hospitalizado por um mês. Perdeu o baço. Para distrai-lo e, ao mesmo tempo, fazer com que entendesse o que estava se passando com seu corpo, a mãe lhe comprou um manual de anatomia muito popular entre as famílias da classe-média norte-americana: Gray’s Anatomy.
Anos mais tarde, esse volume se mostraria fundamental para a formação de Basquiat como artista. Assim como os estudos de anatomia de Leonardo da Vinci e o compêndio de história da arte escrito pelo russo W. H. Janson.
De modo que, se em algumas de suas primeiras telas, como em Old Cars (1981), presente na primeira sala desta exposição, os carrinhos em cena mais se assemelham a desenhos de guri, pode crer que Basquiat os fez assim de caso pensado. Ali interessava a ele o traço ligeiro, ao mesmo tempo infantil e febril, mui próximo à dinâmica dos quadrinhos e dos desenhos animados, emprestando desses os grafismos e as onomatopeias que saltam estridentes – e perigosos – entre as manchas de cor.
Que o apego de Basquiat pelas figuras trazia também um pendor para construir narrativas. Loin (1982), nesse sentido, apresenta o gestual do artista já consolidado, ao mesmo tempo em que sugere ao espectador toda uma história.
Uma vaca, talvez prima daquela que tinha sido apanhada no pasto em The Field Next to the Other Door (1981), o painel que abre esta mostra e que está no alto desta página, aparece como elemento principal em Loin. Como tal, ocupa o centro da imagem. Ao lado dela, ainda se vê ensanguentada a faca que a feriu para cortar o lombo (“loin”). No alto, entre os chifres do animal, uma estrela remete à bandeira do Texas, estado norte-americano de pujante pecuária. Cá embaixo, um osso parece ser o destino do pobre animal. Para equilibrar a composição, campos coloridos e grafismos como flechas, também ligadas ao imaginário texano, e alguns riscos puros e brutos, Basquiat introduzindo com esses elementos, não necessariamente narrativos, um recurso de equilíbrio consagrado pelo abstracionismo e pela arte da primeira metade do século 20, expediente que já fora marcante em pioneiros como Wassily Kandinsky e Paul Klee.
A coroa dourada vale como uma assinatura de Jean-Michel Basquiat e está presente em várias de suas obras. No entanto, mais do que uma marca pessoal, explica o curador Pieter Tjabbes, ela deve ser entendida como um símbolo de Nova York daquela época. Um signo compartilhado entre jovens artistas urbanos da cidade e que era frequentemente encontrável em lugares depauperados como as estações de metrô e os bairros mais afastados de Manhattan.
A perceber que Loin ainda trazia um eixo. A vaca ocupava o centro da composição e a ela se ligavam os demais elementos. Nem sempre Basquiat trabalhava suas histórias assim, seguindo uma única direção. Esta pintura sem título de 1982, que é tratada como Yellow Tar and Feathers (algo como “Alcatrão Amarelo e Penas”), foi produzida na mesma época de Loin – e aqui o pensamento do artista assumiu outro aspecto.
Basquiat trabalhava em seu ateliê envolto numa parafernália de informação constante, conta Pieter Tjabbes, comparando o processo criativo do pintor com o de um DJ que faz sampler, ou seja, que se apropria de elementos de músicas alheias para formar uma nova estrutura musical de sua autoria. Basquiat pintava enquanto a televisão ficava ligada em desenhos animados. Discos de jazz rolavam na vitrola. Livros de arte sempre ao alcance da mão. Amigos entrando e saindo. Ele mesmo saindo para a rua o tempo todo, e toda vez trazendo mais e mais elementos da cidade lá fora. Carregando para o ateliê, inclusive, uns painéis de madeira provavelmente catados de uma caçamba de lixo. Pois lhe pareceram adequados para receber uma pintura.
Em obras como Yellow Tar and Feathers, feita sobre esses painéis de madeira, não há um eixo central. Não há uma hierarquia de figuras. Nesse emaranhado de ideias, a obra mais parece um processo criativo de uma obra. Um processo de uma obra que já é a própria obra. E aqui a tinta ganhava companhia de outros materiais, como chumaços de penas, lambrecados entre as manchas de tinta, emprestando textura e relevo. A comparação feita por Tjabbes com o sampler do DJ fica ainda mais potente quando se percebe que Basquiat resolveu testar os efeitos poéticos de uma máquina de xerox colorida, algo um tanto novo naquele tempo, e então o mesmo desenho apareceu quatro vezes, pouco importando qual o original e quais as cópias.
Jean-Michel Basquiat já era grande, muito grande em 1984. Ele tinha surgido como o audaz e bem-vindo talento num cenário em que a pintura não era mais a linguagem em voga entre os jovens artistas dos Estados Unidos. Após o apogeu do chamado expressionismo abstrato, que se encalacrara numa espécie de beco sem saída estético e técnico, as artes americanas do pós-guerra experimentaram a eclosão de outras vanguardas: na instalação, na performance, no vídeo.
Mesmo a pop art de um gênio como Andy Warhol (1928-1987) partira da pintura, mas logo assumira outros suportes, como a serigrafia, para que o traço do artista não ficasse evidente, uma vez que a intenção era criar um produto final que mais parecesse saído de uma linha de montagem do que de um ateliê caseiro. Não por acaso, Warhol batizou como Factory o lugar onde trabalhava – a “Fábrica”.
Basquiat, no entanto, devia um bocado a Warhol. Afinal, aquele senhor estava entre os artistas que haviam legitimado, anos antes, que alguém dedicasse a personagens de desenhos animados o mesmo olhar com que estudava quadros de Leonardo. Certa feita, após um encontro fortuito, Basquiat convenceu Warhol que os dois deveriam trabalhar juntos. Os dois deveriam pintar juntos. E Warhol não pintava havia muito – o trabalho braçal, ele já o delegara aos assistentes na Factory, dedicando-se apenas ao labor conceitual.
Basquiat estava longe de ser um mero assistente nessa dinâmica com Warhol. Os dois pintavam juntos. No mais das vezes, Warhol tomando a tela virgem e fazendo nela uma composição, sobre a qual Basquiat interferia. Assim fizeram dezenas de obras. Quatro delas cá estão, nesta exposição – entre elas, esta peça sem título conhecida por Two Dogs devido a seus simpáticos vira-latinhas.
A parceria Warhol & Basquiat foi duramente recebida pela crítica norte-americana. Foram acusados de oportunismo e chamados de irrelevantes. Era o primeiro revés numa carreira que vinha ascendente para Basquiat. Os dois artistas acabaram se afastando nesse clima de rebordosa e, como Warhol morreria num par de anos, nunca tiveram a oportunidade de retomar o convívio.
A ausência de Warhol, acredita Pieter Tjabbes, foi muito sentida por Basquiat. O rapaz tinha lá uns tantos amigos, mas perdera o interlocutor mais velho, alguém que respeitava e que o pudesse chamar a atenção para os excessos químicos que já estavam fazendo sua produção patinar.
Os dois, três últimos anos de carreira de Basquiat, de fato, não foram tão velozes, nem tão prolíficos quanto o primeiro momento. De toda forma, dessa fase, a exposição apresenta uma série de pinturas que, a exemplo de Two Dogs, trabalham mais a cor e dosam aquele frenesi de colagem, aquele caos de informação. Um outro movimento característico desse último Basquiat pode ser percebido nas pinturas gêmeas Black e Jazz (1986), aqui apresentadas como um díptico.
A superfície plana já se mostrara curta para Basquiat, que nela vinha aderindo papéis e outros materiais. Neste par de pinturas sobre painéis de madeira, o artista expande ainda mais seu campo de ação, numa assemblage de volumes que multiplica o número de superfícies que ele pode dispor. Tratando a obra como um mapa mental, a palavra escrita entra como recurso não apenas narrativo mas também expressivo e composicional.
E a música, que servia de trilha-sonora constante no seu ateliê, desta vez ocupou o coração da própria obra. O jazz de Louis Armstrong e de Charlie Parker, dois visionários que, cada um a seu tempo, cada um a seu modo, expandiram os limites da arte que praticavam. Dois raros herois negros em uma América demasiado branca. Assim como Jean-Michel Basquiat.