Quais os limites do direito ao esquecimento?
O direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos passados ou reescrever a própria história
Flávia Guth
atualizado
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Quantos de nós se lembram da triste ocorrência da Chacina da Candelária? E quantos de nós lembramos do caso de Aída Curi? E o que esses dois casos têm a ver com o direito ao esquecimento? Aliás, o que significa o direito ao esquecimento? De início é importante dizer que o direito ao esquecimento se apresenta no sentido oposto ao direito amplo e praticamente irrestrito a toda e qualquer informação disponível em alguma fonte, especialmente quando temos poderosas ferramentas de pesquisa na rede mundial de computadores.
O direito ao esquecimento encontra sua conformidade na dignidade da pessoa humana, mais especificamente nas dimensões da proteção da vida privada, da honra, da imagem e do nome. Trata-se, portanto, do direito de ser esquecido mediante a restrição ou limitação do acesso as informações que dizem respeito a determinados fatos relacionados a um indivíduo. Em outras palavras, as pessoas têm o direito de ser esquecidas pela opinião pública e pela imprensa.
Pode parecer uma contradição com o que já tratamos aqui na coluna sobre liberdade de expressão e direito à informação, mas não é e explico. No Direito brasileiro, a única norma que trabalha um aspecto do assim chamado direito ao esquecimento, encontra-se no artigo 7º, X, da Lei do Marco Civil da Internet:
Art. 7º – O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação da internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstos nesta lei.
Muito embora não haja nada além dessas abrangentes expressões contidas no Marco Civil da Internet, o direito ao esquecimento é direito fundamental e encontra sua conformidade não apenas na lei, mas também e principalmente na Constituição Federal, devendo receber proteção nesse sentido e em suas mais diversas dimensões.
O Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de julgar, em duas oportunidades, casos que versavam sobre o direito ao esquecimento. No primeiro deles, a 4ª turma do STJ reconheceu o direito ao esquecimento para um homem inocentado da acusação de envolvimento na Chacina da Candelária, que anos depois de absolvido foi retratado pelo programa Linha Direta, da TV Globo. No recurso, o homem sustentou que recusou pedido de entrevista feito pela TV Globo, mas mesmo assim o programa o citou como um dos envolvidos na chacina, mesmo tendo sido absolvido pela Justiça.
Ele ingressou na Justiça com pedido de indenização e argumentou que sua citação no programa levou a público, em rede nacional, situação que já havia superado, reacendendo na comunidade onde reside a imagem de chacinador e o ódio social, ferindo seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal. Alegou, ainda, que foi obrigado a abandonar a comunidade para preservar sua segurança e a de seus familiares.
Ao analisar a ação, a 4ª turma entendeu que o réu condenado ou absolvido pela prática de um crime tem o direito de ser esquecido, pois se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes e à exclusão dos registros da condenação no instituto de identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos. O Superior Tribunal de Justiça concluiu, ainda, que a ocultação do nome e da fisionomia do autor da ação não afeta a liberdade de imprensa. A sentença, então, foi mantida e a emissora condenada a pagar R$ 50 mil de indenização.
O segundo caso refere-se à história do assassinato da Aída Curi, estudante de 18 anos morta após ser atirada de um prédio no Rio de Janeiro. O caso desse crime foi apresentado no programa Linha Direta com a divulgação do nome da vítima e de fotos reais, o que, segundo seus familiares, trouxe a lembrança do crime e todo sofrimento que o envolve.
A TV Globo foi acionada judicialmente pelos irmãos da vítima pretendendo a condenação da emissora por danos morais, materiais e à imagem. Por maioria de votos, o STJ entendeu que, nesse caso, o crime era indissociável do nome da vítima, não sendo possível que a emissora retratasse o caso omitindo o nome da estudante.
Em sua defesa, a TV Globo afirmou que a reportagem limitou-se a reproduzir imagens originais de Aída uma única vez, usando de dramatizações ao longo do episódio e que o foco da reportagem foi no crime e não na vítima. O STJ entendeu, nesse contexto, que a divulgação da foto da vítima, mesmo sem consentimento da família, não configurou abalo moral indenizável.
Mesmo reconhecendo que a reportagem trouxe de volta antigos sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60 anos atrás, a turma entendeu que o tempo, que se encarregou de tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares.
Fundamentalmente, o direito ao esquecimento tem sido abordado na defesa dos cidadãos diante de invasões de privacidade pelas mídias sociais, blogs, provedores de conteúdo ou buscadores de informações. O instituto tem se fortalecido em razão da facilidade e velocidade de circulação e de manutenção de informação pela rede mundial de computadores, capaz de hiperbolizar boatos, fatos e notícias a qualquer momento, mesmo que decorrido muito tempo desde os atos que lhes deram origem.
Mas é preciso deixar claro que o que se garante com o direito ao esquecimento é apenas a possibilidade de discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos nos meios de comunicação social, sobretudo nos meios eletrônicos.
O direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos passados ou reescrever a própria história. Não será qualquer informação negativa a um indivíduo que será definitivamente eliminada ou sofrerá restrições de acesso no mundo virtual.
Será preciso que o magistrado, orientado pela ponderação entre os valores envolvidos, de modo razoável e proporcional, entre a proteção do direito à intimidade e imagem de um lado, e as regras constitucionais de vedação à censura e da garantia à livre manifestação do pensamento, bem como à liberdade de imprensa.
Ao julgar o recurso, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime, as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento – se assim desejarem -, direito esse consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana solução de reconhecer esse direito ao ofensor (que está relacionado com sua ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos, permitindo que os canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas pelas quais passaram.
Não obstante isso, assim como o direito ao esquecimento do ofensor – condenado e já penalizado – deve ser ponderado pela questão da historicidade do fato narrado, assim também o direito dos ofendidos deve observar esse mesmo parâmetro. Em um crime de repercussão nacional, a vítima – por torpeza do destino – frequentemente se torna elemento indissociável do delito, circunstância que, na generalidade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se pretenda omitir a figura do ofendido.
O que se pretende com o direito ao esquecimento, portanto, não é a restrição às informações de forma absoluta e desarrazoada. Ao revés, o que está em controle é a exacerbada exploração midiática e abusiva do sofrimento alheio, que deve ser efetivamente reprimida não apenas pelo Poder Judiciário, mas também pela sociedade.