Quais os riscos de expor crianças à publicidade?
Cofundadora do Movimento Infância Livre de Consumismo fala sobre como lidar com os conteúdos disseminados pelo YouTube
atualizado
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Começa de maneira inofensiva: você, um dia, decide emprestar o celular ou o tablet para o seu filho, para ter alguns instantes de sossego. Coloca um vídeo bacana, com música, educativo. Aí, a criança – que, provavelmente, cresceu te vendo mexer em uma tela – começa a fazer o mesmo com os próprios dedinhos. Navega, explora, clica nos ícones que mais atraem.
Quando você se dá conta, o que aparece no “carrossel” do YouTube Kids são repetidos vídeos de unboxing (o desembalar de novos brinquedos) ou então de crianças e marmanjos mostrando bonecos novos e divertidos, falando alto, embalados por música e movimentos frenéticos. Você bloqueia um, dois, três canais, mas eles parecem se reproduzir.
“A publicidade não vende apenas produtos. Vende valores. Então, é arriscada a exposição de crianças que ainda não têm maturidade para compreender as figuras de linguagem do discurso, ou mesmo que ainda não têm consolidados valores familiares e comunitários”, afirma a publicitária Mariana Sá, cofundadora do Movimento Infância Livre de Consumismo (Milc) e membro da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc), duas iniciativas que alertam para os riscos da propaganda destinada ao público infantil.
Nesta entrevista, Mariana fala sobre como lidar com a oferta desse tipo de conteúdo:
Quais os riscos de submetermos as crianças à publicidade?
A publicidade/propaganda é uma das principais ferramentas de disseminação da ideia e da consolidação da sociedade de consumo. Crianças expostas desde a mais tenra idade terão mais dificuldade em enxergar e compreender outros modos de vida que não estejam completamente assentados no consumo. E esses modos de vida existem, apesar de invisíveis.
De que forma a internet mudou o paradigma das propagandas com foco no público infantil?
Há algumas décadas, a publicidade de marcas tinha lugar: o break comercial. Antes mesmo da internet, a propaganda começou a transbordar para fora do break (merchandising e product placement). Ainda assim, era mais fácil compreender que aquela marca pagou para estar ali, nas mãos de um personagem ou apresentador. Agora, com a multiplicação de influenciadores (qualquer pessoa pode ter um canal ou um perfil), não é possível saber se aquela opinião ou produto são espontâneos ou patrocinados. Se, para os adultos, distinguir opinião pessoal de publicidade é um desafio, imagine para crianças.
Qual seria a maneira correta de apresentar a publicidade na internet?
Influenciadores responsáveis devem deixar explícito quando estão sendo pagos para falar sobre determinado produto. Produzir conteúdo é um trabalho e merece ser remunerado, no entanto, é preciso demarcar o espaço da publicidade e o do conteúdo, especialmente quando é dirigido às crianças. Influenciadores que enaltecem produtos como se não tivessem sido pagos não são honestos.
Mas isso não basta, certo?
Não, isso não é suficiente para distinguir se ele é adequado às crianças e faixas etárias. Muito da massificação do “ter” não é explicitado durante a opinião ou uso de um produto. Então, permitir que a criança esteja na internet sozinha consumindo conteúdo é como mandá-la para a casa de coleguinhas cujos pais você nunca viu.
Como explicar o sucesso dos irmãos Neto? (Recentemente, o youtuber Felipe Neto, um sucesso entre crianças e adolescentes, foi alvo de críticas em relação à qualidade do conteúdo que produz).
Não tem nenhuma novidade no tosco fazer sucesso. Esse tosco, que parece espontâneo e verdadeiro, sempre foi sucesso de audiência, assim como o flagra, a pegadinha, o escorregão, o deboche. Nós, seres humanos, rimos de situações flagrantes da nossa humanidade, da falha. A diferença é que não precisamos mais esperar pelo domingo para ver pegadinhas e cassetadas. Todo tipo de humor, inclusive esse que sempre atraiu crianças menores, está disponível 24 horas por dia, aos borbotões, na internet. Antes de nos perguntarmos por que as crianças riem dos irmãos Neto (e de personagens como eles) precisamos observar do que nós, os adultos, rimos.
Como lidar com a oferta, então? Devemos proibir o acesso?
Nós, do Milc, não temos receita de bolo. Acreditamos que cada família deve absorver o máximo possível de informação em relação aos riscos e benefícios da exposição seja lá a que conteúdo for e, sintonizadas aos seus valores, o seu nível de capacidade de resistir e sua disponibilidade, pensar o encaminhamento, de preferência, em conjunto com as crianças. A vedação pura e simples resolve a questão até determinada idade. A partir do contato com outras crianças, famílias e dinâmicas, essa interdição pode se mostrar insuficiente.
Como oferecer conteúdo de qualidade para as crianças? Vocês recomendam algum canal?
Sugerimos que os adultos busquem observar o conteúdo que os filhos gostam. Percebam as entrelinhas e o tipo de publicidade. E, aqui, acabo por relativizar a própria publicidade: se um canal é bom, bem produzido, cuidadoso com a linguagem, os valores e a infância da audiência, se tem um espaço delimitado para a publicidade, mesmo que faça ou permita propaganda de marcas, este é preferível aos que a escamoteiam ou aos que disseminam péssimos valores. Chegamos a uma situação de tamanha gravidade, em que a divulgação de marcas é preferível ao pensamento tosco de certos personagens.
Você acha que há mais preocupação com esse tipo de coisa atualmente?
No Milc percebemos um interesse importante por parte da mídia em pautar esse tema e uma abundante produção acadêmica, que busca compreender o fenômeno e se antecipar sobre as consequências para os futuros adultos.
Mas isso ainda é muito pouco, certo?
Pela quantidade de visualizações desse tipo de vídeo, a audiência cativa, as plateias nos eventos presenciais (formada inclusive pelos pais), as fortunas amealhadas por jovens adultos produtores de conteúdo e, até mesmo, pelos sonhos das crianças de serem youtubers quando crescerem, podemos admitir que a crítica encontra-se ainda restrita a círculos privilegiados pelo acesso à informação. O que transborda desses círculos acaba chegando à população de maneira sensacionalista, muitas vezes, causando pânico instantâneo e descartável, culpa (mas nunca responsabilidade) e sem buscar o devido aprofundamento que permita compreender a notícia, não como caso isolado, mas como sintoma ou parte de um fenômeno maior.
Para saber mais sobre esse assunto, acesse o guia do Milc sobre navegação no YouTube.