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A 21ª edição do Big Brother Brasil trouxe à tona algumas demandas sociais urgentes, entre elas uma prática comum em tempos de hiper-conexão e exposição: o cancelamento. Ainda que sejamos todos canceladores e cancelados em potencial, a exposição da prática em rede nacional causou surpresa e revolta mesmo sendo algo comum e recorrente. Conversamos com Daniela Arrais, sócia da @contente.vc, plataforma para uma vida digital mais consciente, sobre o tema e quais seus danos.
O que é cultura do cancelamento?
A cultura do cancelamento é um fenômeno das redes sociais em que uma pessoa, geralmente pública, é boicotada momentaneamente depois de fazer ou dizer algo que é considerado errado/ofensivo por um grupo de pessoas. Pode durar três dias e logo ser substituído por um novo cancelamento (ou algumas horas, no caso no BBB), mas pode ter implicações profundas na vida de quem é alvo. É uma forma de dizer publicamente que você repudia uma atitude. Geralmente, o cancelamento vem com uma escalada de agressividade. É preciso se posicionar diante daquele absurdo, mesmo que para isso haja muita raiva a cada postagem, muita declaração de que você não concorda, que odeia aquela atitude. Muitas vezes, cancelamos quem discordamos usando ódio como moeda. E isso é eficaz? Um texto publicado no Merriam-Webster, dicionário de língua inglesa, traz um ótimo ponto. “Há um aspecto performativo no cancelamento, pode-se argumentar que ele paradoxalmente amplifica aquilo que busca suprimir, mesmo que só naquele momento.” Por que isso acontece? Porque o nome de quem é cancelado é falado por mais gente, em todo lugar. Então quem foi cancelado pode até perder seguidores momentaneamente, mas fica em evidência. E estar em evidência é a grande moeda das redes sociais, né? E também desse momento em que vivemos.
Por que isso acontece?
Por tantos motivos. Um deles é que as redes sociais foram desenhadas para que a gente fique em bolhas. Achamos que temos acesso a todo tipo de informação (e até temos), mas nos confortamos em ficar próximos das ideias com as quais concordamos. Quanto mais você se engaja em um perfil, mais ele aparece para você. Ou seja, se você está vendo alguém ser cancelado ao vivo e endossa aquilo com seu like, sua internet vai te mostrar cada vez mais conteúdos parecidos. É a nossa “bolha de filtros”, como classifica o pesquisador Eli Pariser. Essa bolha é nosso universo de informações no mundo digital. E o problema é que não vemos o que fica de fora. Se duas pessoas pesquisam o mesmo assunto no Google, ao mesmo tempo, podem receber resultados diferentes. E nós não temos noção disso, de que nossos resultados são diferentes. Então nos surpreendemos quando uma eleição é definida de lavada pelo candidato em que não votamos. Como assim, no meu feed só tinha gente votando no outro candidato? Pois é. Acabamos vendo o que a internet acha que nós queremos ver, mas será que é o que temos que ver? Será que o desenho das coisas tem complexidade? Ficamos isolados, buscando reforçar nossa visão de mundo, aquilo em que acreditamos. Isso pode até trazer um conforto inicialmente, mas nos deixa incapazes para lidar com coisas que fujam do que a gente acredita… A gente quer pertencer. Cancelar alguém que todo mundo está cancelando reforça nossa identidade. Nos faz ir na manada, no oba a oba. Mas onde fica o espaço para discussão? Como amplificamos debates importantes? Como questionamos atitudes, comportamentos e saímos com mais clareza e consciência de um embate? Precisamos falar mais sobre construir do que de cancelar.
Quais são os danos para quem cancela? E para quem é cancelado?
Muitas vezes o cancelamento coloca em evidência quem foi cancelado. E, como falei ali acima, ficar em evidência é a grande moeda. Quantas vezes vimos artistas tendo atitudes terríveis, serem cancelados e, um tempo depois, voltarem à mídia? Com a mesma ou mais projeção. Não sabemos sobre a “eficácia” da cultura de cancelamento. Muitas vezes, tenho a impressão de que gente está usando cancelamento como atalho pra fazer justiça social. Seria esse o melhor caminho? Imagino que não. Tem um tweet da Glória Groove que resume bem a questão: “Não contem comigo pra construção dessa cultura do cancelamento, tá? ‘Cancelar’ a galera nunca resolveu nada, só afastou os equivocados da pauta em questão. Além disso, no dia que eu também errar — como o ser humano que sou —, não vou curtir ver ninguém me cancelando e sim me instruindo”.
No caso do BBB21, o medo do cancelamento é latente. Por que?
Os participantes parecem ter entrado no jogo querendo reproduzir as dinâmicas da edição anterior, em que “fadas sensatos” e “homens tóxicos” tiveram muitos embates, em que o racismo contra o Babu ficou evidente e foi muito falado fora da casa. Parecem ter entrado não querendo repetir erros, né? Não à toa o Fiuk fez umas “aulas de desconstrução”. Ninguém quer errar e correr o risco de ser cancelado. Mas a impressão que dá é que, para tentarem ser perfeitos-que-nunca-erram, estão julgando sem dó, sem dar tempo, sem abrir espaço para qualquer diálogo. E ainda há o efeito de manada. Pelo menos até hoje (2/2), a maioria dos participantes está concordando com a Karol Conká. Ela não é questionada. Talvez por ser uma celebridade e exercer aquele magnetismo de quem lida com multidões? Então o “silêncio ensurdecedor” da maioria dos demais participantes fica mais evidente. Não se abre espaço para dúvida, para diálogo. E só se passou uma semana! A gente pode opinar, escolher lado, depois outro. Mas será que cabe a nós cravar sentenças? Falta debate, falta construção. Menos punitivismo, mais diálogo.