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À primeira vista, quartéis das Forças Armadas podem passar a impressão de que são ambientes machistas e, até mesmo, antiquados. No entanto, a experiência de Renata Gracin, major do Exército, mostra que as coisas estão mudando. Renata é uma mulher transgênero e é a primeira oficial a ganhar o direito de permanecer na Força sem precisar entrar na justiça. “Nesse momento, a minha vitória é a de muitas outras trans que vieram antes de mim. Me foi dada a opção de prosseguir na carreira como militar do segmento feminino e pretendo cumprir funções administrativas inerentes ao posto de Major. Isso vai abrir um precedente para que muitas outras trans se assumam no futuro e se sintam seguras para isso”, diz ela.
Apesar de não saber o que seria de seu futuro no Exército após a transição, a criminalização da transfobia pelo STF em 2019 fez com que Renata se sentisse segura para se assumir. “Eu já sabia que o pior que poderia acontecer comigo seria a reforma compulsória. Decidi arriscar, pois o meu desejo interior era muito mais forte do que as consequências que eu poderia enfrentar. Informei aos meus superiores quando meu estágio de transição já estava bem avançado, com o intuito de encontrarmos uma solução em conjunto que fosse boa pra mim e para a instituição. Eu também sabia que qualquer atitude de preconceito, nos dias atuais, pode ser enquadrada como crime. Isso fez toda a diferença nas minhas decisões”, afirma.
A transição de Renata foi recebida com apoio tanto por seus superiores quanto por seus pares, o que a deixou surpresa. “Meus superiores sempre me apoiaram e buscaram atender minhas solicitações. O que me surpreendeu bastante foram as recentes mensagens de apoio que recebi de inúmeros militares, muitos dos quais tive contato durante toda minha carreira. O comando foi bastante acolhedor e buscou saber se o meu interesse era continuar como militar do segmento feminino”.
Antes de Renata, outras militares já haviam passado pela transição de gênero, mas não tiveram a mesma aceitação que ela. Bianca Figueira, Capitão de Corveta da Marinha, e Bruna Benevides, Sargento da Marinha, foram reformadas compulsoriamente e ainda lutam na justiça pelo direito de trabalharem no segmento feminino. “Essas mulheres que tiveram coragem de fazer a transição no passado são as minhas referências. Inclusive, são minhas amigas e mantenho contato com elas desde o início de minha transição. Elas foram corajosas e enfrentaram todas as dificuldades em tempos mais difíceis que hoje”, comenta.
Renata decidiu se assumir como mulher transgênero durante um processo de autoconhecimento após um período de depressão. “Entrei em depressão há 3 anos por causa dessas questões de identidade. Quando percebi que estava muito difícil continuar lutando sozinha, busquei ajuda médica. Tive todo apoio psiquiátrico e psicológico dentro do Exército. Fiquei dois anos em licença médica me recuperando”, conta. Além do suporte das Forças Armadas, ela também contou com a comunidade LGBTQIA+. “Tomei a decisão de me assumir mulher trans na Parada LGBT de 2018. Ver milhares de pessoas reunidas, assumidas e felizes, me fez ver que éramos muito fortes e temos o direito de ser quem queremos ser”.
A major conta que já vive como mulher trans há mais de 1 ano, sem preocupações em se esconder, e nunca havia sido exposta antes. “Comecei a tomar hormônios para a transição de gênero e em 2020 fiz diversas cirurgias plásticas para adequar o meu corpo à minha mente. Quando eu era jovem não tinha toda essa informação que temos hoje. Só fui descobrir que existe terapia hormonal para transição de gênero há pouco tempo atrás”. Mas como ainda está de licença médica se recuperando da depressão, não sabe como será a receptividade no dia a dia do quartel. “Ainda não me viram fardada como mulher. Nem eu me vi com farda depois da transição”.
Ao ver suas redes sociais invadidas por comentários, Renata escreveu: “Hoje acordei com minhas redes sociais lotadas de notificações. O dia que eu sabia que iria chegar, chegou! Estou sendo exposta em grupos de WhatsApp do Brasil todo, o que não me abala. Sou uma lutadora da causa LGBTQIA+ e defensora dos direitos humanos. Sou Major do Exército Brasileiro e minha luta continua”. Mas o que a surpreendeu foi o apoio recebido. “Foram milhares de mensagens de apoio. Eu me surpreendi demais com isso. Mensagens negativas foram muito poucas, creio que 1% do número de mensagens positivas. Senti muita aceitação e isso me deu muita força”.
Renata é formada no curso de Infantaria da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no qual ainda não há oficiais femininos. A AMAN passou a aceitar mulheres em sua turma a partir de 2018 e a formatura é prevista para 2021. Mesmo assim, elas ainda não podem se candidatar a todas as especializações. Entre as áreas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Comunicações, Material Bélico e Intendência, as cadetes poderão optar somente pelas duas últimas.