Veja por que a sustentabilidade virou o foco da moda nesta década
Incidente na fábrica de Rana Plaza, em Bangladesh, desencadeou revolução que impactou drasticamente os rumos da indústria têxtil
atualizado
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Na moda, o passar de uma década sempre é um divisor de águas. Vimos o estilo hippie dos anos 1970 dar lugar à extravagância e silhuetas justas dos anos 1980, à medida que as modelagens sensuais dos anos 2000 sucederam a onda rocker e o jeanswear que tomaram o período anterior. No entanto, chegaremos a 2020 com mudanças que vão muito além de formas e cores. Hoje, mais do que qualquer comportamento da indústria, as políticas sustentáveis se tornaram cruciais para as empresas que almejam um lugar no coração dos consumidores.
Vem comigo entender como essa revolução aconteceu!
A década começou com uma importante dica sobre o que estava por vir. Ainda em 2011, o lançamento do livro To Die For: a moda está desgastando o mundo?, da escritora Lucy Siegle, ofereceu uma visão surpreendentemente franca de um setor que evoluía sem qualquer responsabilidade socioambiental.
A publicação, contudo, não seria realmente apreciada até 24 de abril de 2013, quando um colapso na fábrica de Rana Plaza, em Daca, capital de Bangladesh, matou 1.138 pessoas. Esse não foi o primeiro acidente causado pela inconsequência da indústria têxtil, mas a proporção do acontecimento garantiu que o mundo voltasse seus olhos aos dramas do segmento.
Um público horrorizado assistiu às milhares de vítimas da tragédia serem conectadas a marcas como Benetton, Mango, Matalan e Primark, fazendo muita gente se sentir cúmplice da catástrofe.
A tragédia foi amplamente abordada nos maiores canais de notícias do planeta e, um ano mais tarde, os ativistas do setor aproveitaram a visibilidade do incidente para criar a hashtag #QuemFazMinhasRoupas, cobrando mais transparência das marcas do segmento.
O movimento registrou mais de 6 milhões de acessos no Google. Uma série de livros e filmes começou a expor o lado obscuro da moda a um público recém-interessado. As condições subumanas de trabalho mostradas no documentário The True Cost, apresentado em 2015, se tornaram a gota d’água para aqueles que já estavam se sentindo incomodados com o fast fashion, gerando um boicote em escala mundial.
Em resposta à pressão, marcas como Zara e H&M começaram a lançar linhas ecológicas, com roupas feitas em algodão orgânico e materiais reciclados. A gigante espanhola investiu até mesmo em um serviço de coleta de peças usadas, mas a bolha que havia estourado era muito maior que tal medida.
O diálogo em torno da crise climática atingiu o auge do desespero, enquanto nomes como Greta Thunberg alertavam sobre a necessidade de medidas imediatas para compensar as agressões sofridas pelo meio ambiente nas últimas décadas.
De repente, todos estavam observando os próprios hábitos de consumo. Pessoas que nunca haviam pronunciado a palavra sustentabilidade viam o termo estampado em revistas e redes sociais com uma frequência inédita na história.
Se nos anos 1990 os fashionistas não deixaram de comprar produtos da Nike após o escândalo de trabalho infantil, em 2018 todas as varejistas amargaram crises enormes por não se adequarem à onda verde que tomou a moda.
Para combater a perda nos lucros, grifes de luxo iniciaram uma corrida contra o tempo para demonstrar preocupação com o caos climático. A Gucci passou a compensar as emissões de gás carbônico, ao passo que Burberry, Chanel, Coach, DKNY, Michael Kors, Prada e Versace se comprometeram a eliminar o uso de peles em suas criações.
A Prada lançou o projeto Re-Nylon, uma linha de bolsas fabricadas com nylon reciclado, e o grupo LVMH recrutou a estilista Stella McCartney para direcionar os projetos sustentáveis do conglomerado.
Para 2020, a busca por medidas socioambientais deve se intensificar ainda mais. O levantamento anual do site Lyst, divulgado no início de dezembro, informou que as buscas relacionadas à sustentabilidade aumentaram 75% neste ano, com uma média de 27 mil pesquisas por mês.
A procura por materiais sustentáveis, como econyl, algodão orgânico e tencel, subiu mais de 50%, enquanto jeans e tênis ecologicamente corretos ficaram entre os itens mais visitados. Atentas a essa movimentação, muitas etiquetas apresentaram calçados reciclados ou biodegradáveis em 2019.
Outro fator interessante levantado pela plataforma é que houve um aumento de 255% no tráfego de produtos de segunda mão. Segundo relatório da ThreadUp, 26% dos compradores de luxo agora procuram pelo segmento second hand.
O site de revenda TheRealReal observa que 32% dos consumidores veem nesses produtos um antídoto para o fast fashion. “A indústria da moda é uma das mais poluentes do mundo e os consumidores cada vez mais entendem que prolongar a vida de uma peça de roupa tem um impacto positivo”, diz Cecile Wickmann, fundadora do site de revenda Rebelle, ao The Guardian.
Agora avaliado em US$ 1 bilhão, o mercado de aluguéis também deve crescer na próxima década, com uma receita de US$ 1,9 bilhão até o final de 2023. Segundo o relatório de sustentabilidade da Mintel, mais da metade dos millennials já alugou ou tem vontade de alugar roupas e acessórios.
“Antes, as pessoas procuravam acessar marcas de luxo a um custo mais barato. Os preços eram o principal motivador. Agora, eu diria que elas são movidas por um comportamento ético e isso é particularmente verdadeiro entre os consumidores mais jovens”, afirma Fanny Moizant, cofundadora da Vestiaire Collective.
A preocupação dos ativistas da moda agora diz respeito aos produtos de vida útil curta, como camisetas, lingeries e sapatos. Estima-se que 50 milhões de toneladas de roupas são descartadas todos os anos – a maior parte inclui esses itens, normalmente muito desgastados para o mercado de revendas.
Nos últimos anos, eliminou-se gradualmente o uso de sacos plásticos e descartáveis, mas é necessária a mesma consciência a respeito das roupas. “Precisamos nos acostumar a olhar para as coisas e entender que nada realmente desaparece”, explica Stacy Flynn, CEO da Evrnu.
Ela chegou a essa conclusão há quase uma década, quando viajava pela China. Ao passar por uma cidade industrial, não conseguiu ver seu colega ao lado por causa da quantidade de fumaça. “Percebi o impacto e o dano que nossa indústria causa ao meio ambiente e comecei a somar todos os milhões de metros de tecido que coloquei no mercado durante minha carreira. Eu estava contribuindo para o problema”, disse à Vogue.
Após o choque de realidade, a empresária lançou, em 2015, uma tecnologia inovadora que permite transformar sobras de algodão em líquido para depois refazer fibras mais fortes e de melhor desempenho.
O primeiro moletom 100% reciclado da colaboração entre Adidas x Stella McCartney utiliza a matéria-prima desenvolvida pela Evrnu.
“Algodão e poliéster compõem 90% de todas as roupas, e ambas as fibras exigem uma quantidade enorme de recursos. Os consumidores jogam fora cerca de 80% de suas roupas diretamente no lixo. Sabíamos que havia uma maneira de retirar esse desperdício, decompô-lo em um polímero e transformá-lo em uma nova fibra, que seria o ponto central da redução do impacto de nossa indústria”, explica Stacy.
Um ponto-chave da nova economia têxtil é que a moda deve eliminar gradualmente os recursos não renováveis e avançar em direção a insumos regenerativos. Em estágio de protótipo, o algodão reciclado da Evrnu chegará ao mercado até 2021. Em seguida, a empresa trabalhará para reconstruir o poliéster.
“Eu posso ver um mundo em que os consumidores nem possuem as coisas que vestem. Será quase como um arrendamento, onde eles mantêm o produto pelo tempo que quiserem e depois devolvem ao proprietário, para que seja transformado em um novo. Acho que esse é o maior desafio da moda para a próxima década: transformar itens sem perder valor”, revela.
Essa é exatamente a filosofia que Chloe Songer e Stuart Ahlum, da marca de tênis Thousand Fell, adotaram. A dupla lembra à Vogue que 99% dos calçados acaba em um aterro. Os sapatos se desgastam e perdem a forma, além de ficarem sujos e mal cheirosos. Como os tênis são feitos, em sua maioria, de plástico, eles podem levar até 1 mil anos para se decompor.
A solução encontrada pela etiqueta foi oferecer tênis veganos que, após usados, são devolvidos à empresa para reciclagem, sendo substituídos por um novo par. Para dar início ao projeto, os idealizadores apostaram em modelo básico.
“As pessoas estão substituindo seus tênis brancos a cada seis meses. Eles não sabem o que fazer com eles, então os jogam no lixo. Não existe um mercado secundário para esse tipo de produto. Cabe à marca reciclá-los”, diz Ahlum.
Gastar US$ 300 em uma camiseta de grife não fará sentido algum na próxima década. O futuro é das peças que têm bom potencial de revenda. Comprar algo barato que você usará apenas algumas vezes será tão ultrapassado quanto usar um casaco de pele na atualidade. É bom ir se acostumando com a ideia.
Colaborou Danillo Costa