O que a parceria de Kanye West com a Gap significa para o mundo da moda?
Ao firmar parceria de 10 anos com a marca, rapper pode conduzi-la a uma nova experiência de consumo, mas com alguns percalços no caminho
atualizado
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Na semana passada, o rapper Kanye West divulgou uma parceria de 10 anos com a Gap, por meio de sua marca de roupas Yeezy. A gigante do varejo norte-americano vê no artista a chance de se reerguer no mercado, após fechar centenas de lojas físicas nos últimos anos e ver suas vendas caírem 43% no primeiro trimestre de 2020. Após o anúncio, a tática se mostrou bem sucedida, uma vez que as ações da companhia subiram 36% em algumas horas. Todavia, ao apostar todas as suas fichas no cantor, que sonha em reerguer a companhia desde sua estreia na moda, em 2015, a empresa pode esbarrar em alguns problemas de relações públicas.
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Amor antigo
A história de Kanye com a Gap não é de hoje. No ensino médio, o rapper trabalhava meio período em uma das lojas da rede, em Chicago. “Na época, aos 15 anos, eu não desejava fazer roupas, mas sempre senti que eu queria estar perto daquilo. Amava os tecidos, cores e proporções”, lembrou ele à revista Paper, em 2015.
Depois da experiência, a vida do norte-americano deu uma guinada rumo ao palcos, porém, ele nunca esqueceu de sua relação com a etiqueta. Em seu primeiro álbum, College Dropout, lançado em 2004, West citou a empresa na música Spaceship. “Vamos voltar para a Gap. Olhe para meu pescoço, não há um arranhão. Então, se eu roubei, não foi minha culpa. Eu roubei, mas nunca fui pego”, diz um dos versos da canção.
Além disso, o artista a mencionou a marca em dezenas de entrevistas ao decorrer de sua carreira. “Eu gostaria de ser o Steve Jobs da Gap”, disse ele ao In Style, também em 2015. Todavia, antes de conquistar uma posição de destaque na gigante do varejo, o músico precisava mostrar que estava à altura, e ele não decepcionou em seus primeiros passos. Ao lado de etiquetas como Nike e Adidas, o rapper transformou sua Yeezy em uma das marcas mais promissoras do mercado.
Império Yeezy
Em 2009, Kanye começou sua aventura pelo universo dos sapatos. Além de desenvolver uma coleção para a Louis Vuitton, o artista se tornou a primeira pessoa que não é atleta a lançar uma colaboração completa com a Nike. Todavia, foi sua parceria com a Adidas que lhe rendeu o selo de aprovação da indústria.
O tênis Yeezy Boost, parte do primeiro compilado de West para a etiqueta alemã, foi um sucesso absoluto de vendas e, sete meses depois, o rapper foi convidado a estrear no New York Fashion Week de primavera/verão 2016, com a segunda coleção da grife para a gigante esportiva.
Ainda que muitos críticos tenham torcido o nariz para a inserção do cantor no universo fashion, o projeto foi bem recebido pelo mercado. “Vi este artigo que perguntava: ‘Kanye deveria deixar a moda para os profissionais?’. No momento em que vendo minha primeira camiseta ou meu primeiro sapato, isso me torna um profissional. Além disso, ao me sentar com Riccardo Tisci no Louvre, enquanto ele me convence a usar um kilt de couro, isso me faz parte da moda. É engraçado ser tão famoso e conhecido por ser artista e ter tantas pessoas me jugando por fazer arte”, comentou ele em carta publicada na revista Paper.
Nos primeiros meses da Yeezy, muito se especulou sobre a capacidade do cantor de levar seu novo negócio adiante, mas, aos poucos, os players do setor entenderam que o norte-americano havia chegado para ficar. “No momento em que vi Alber Elbaz, ele me deu um tapinha nas costas e disse ‘continue’. As pessoas, finalmente, me reconheceram e me deixaram fazer parte da conversa. Meu objetivo não é romper esse mundo. Eu não ligo se as pessoas irão clicar no polegar para baixo. Eu me preocupo em inovar. No momento, mais de 70% do meu foco está no vestuário. Moda é algo que está no meu coração”, concluiu ao veículo.
A persistência e dedicação ao mundo da moda deu certo e, em 2019, a Yeezy atingiu US $ 1,3 bilhão em vendas, segundo o New York Times. Recebendo 11% da receita dos tênis, Kanye, que é o único dono da empresa, recebeu US$ 140 milhões. Somado a seu patrimônio da música, o montante o colocou na lista de bilionários da Forbes.
Atualmente, os sneakers da Yeezy estão entre os calçados mais caros do mercado, com valores que ultrapassam os R$ 2 mil. Os sapatos são tão cobiçados que alguns compradores estão dispostos a gastar 400% a mais para colocar as mãos em um par no mercado de revendas.
Ainda assim, o rapper sempre desejou popularizar seu selo. “Eventualmente, todo mundo que quiser um Yeezy vai ter um Yeezy”, disse ele durante um telefonema no programa On Air with Ryan Seacrest, após sua primeira coleção esgotar. Agora, ao lado da Gap, o norte-americano pode fazer tudo o que sempre quis: tornar sua etiqueta acessível e reerguer a marca onde trabalhou durante a adolescência.
Gap em declínio
A essa altura, o acordo com a Yeezy pode ser a última cartada da Gap em direção à recuperação. À medida que a varejista luta para concorrer com avanço do comércio on-line e das lojas de departamento europeias, como Zara e H&M, as vendas da companhia não têm apresentando estabilidade.
Em 2015, a saída de produtos caiu 4%, levando a gigante do vestuário a diminuir seu número de operações físicas. Dois anos e dezenas de lojas a menos depois, uma alta de 3% sinalizou a desejada retomada. Porém, após 12 meses, o volume de negócios não voltou a crescer.
Na tentativa de enxugar ainda mais os gastos, mais 200 instalações foram fechadas no início de 2019, e, novamente, as vendas voltaram a encolher. Apenas no primeiro semestre do ano passado, uma queda de 4% foi registrada. Na bolsa, as ações da companhia despencaram mais de 30%, levando o CEO Art Peck a ser demitido, após 15 anos de casa.
Ao entrar nesta nova década, a Gap recorreu a grife Telfar para uma colaboração que tinha tudo para fazer sucesso entre os amantes da moda. A pandemia, porém, jogou um balde de água fria no projeto, que foi adiado indefinidamente.
Com 90% de suas 3.900 lojas fechadas por conta da suspensão do comércio ao redor do mundo, as vendas despencaram 43% no primeiro trimestre de 2020, totalizando mais de US$ 932 milhões perdidos.
Em abril, a marca foi incluída na lista vermelha de um consórcio norte-americano de direitos trabalhistas, o WRC, por não honrar com os pagamentos de sua cadeia de produção durante o lockdown.
Antes do acordo com Kanye ser anunciado, na quinta-feira (25/06), as ações da empresa eram negociadas a US$ 10,16, valor 43% menor em comparação ao início desde ano. No entanto, quando as notícias da parceria foram divulgadas, as ações dispararam 29% em questão de horas. Ao final do dia, esse número chegou a 36% na bolsa de Nova York.
Analistas dizem que West pode, realmente, ser a solução para o problema da gigante do vestuário. “Eles precisam dos clientes mais jovens, que se preocupam com o streetwear. Oferecer uma grife de luxo a um preço mais em conta deve suprir essa demanda”, refletiu o analista Oliver Chen, à Forbes.
Em relacionamento sério
Três décadas, US$ 140 milhões em vendas e muitas investidas depois, a Gap finalmente caiu nos encantos de Kanye West, que agora tentará ajudar seu antiga empregadora a sobreviver. Na última sexta-feira (26/06), a empresa anunciou que firmou um contrato de 10 anos com o rapper, podendo esticar o compromisso por mais cinco anos, de acordo com o The New York Times.
A nova linha de roupas, batizada de Yeezy Gap, será lançada no segundo semestre de 2021 e incluirá “conceitos básicos modernos para homens, mulheres e crianças, sempre com preços acessíveis”. A Yeezy cuidará do desenvolvimento de produtos, enquanto a Gap fica com a distribuição. Além disso, foi anunciado que algumas “expressões únicas da Yeezy Gap” serão implementadas nas 3.900 lojas e canais digitais da tradicional etiqueta.
Sem revelar os termos financeiros do acordo, a companhia com sede em São Francisco frisou que o trabalho não englobará sapatos, para não entrar em conflito com a Adidas, antiga parceira de West.
“Estamos empolgados em receber Kanye de volta à família Gap como um visionário criativo, aproveitando a estética e o sucesso de sua marca Yeezy e definindo juntos o próximo nível da experiência de varejo”, disse o chefe global da Gap Brand, Mark Breitbard, em declaração. O The New York Times apurou que o acordo pretende gerar US$ 1 bilhão em vendas anuais a partir do quinto ano da colaboração.
Pouco depois de anunciar a parceria, Kanye West passou a direção criativa do projeto à estilista nigeriana radicada na Inglaterra Mowalola Ogunlesi. A designer, que não é tão conhecida no meio fashion, já trabalhou ao lado de Virgil Abloh na Off-White.
A Gap parece estar animada com a parceria. Além de reformular a logo da label, substituindo o nome da marca pelas letras “YZY”, uma loja de Chigaco, onde Kanye costumava ser cliente, ganhou uma mensagem gigantesca em suas paredes.
“Olá Chicago, sou eu. Esta é a loja da Gap na qual costumava fazer compras. Eu dirigia meu Nissan, saindo do sul da cidade. Tão abençoado. Agradeço a Deus e estou tão honrado pela oportunidade de servir. Eu coloco meu coração na paleta de cores e em todo detalhe. Eu amo Tron, aquele original. Você gosta de coisas? Não sei bem o que fazer com minhas mãos. Amor Yeezy.”
No embalo das boas notícias, o artista ainda divulgou dezenas de novos empregos na fábrica da Yeezy em Cody, no estado de Wyoming. Com a colaboração, a produção da etiqueta deve expandir consideravelmente, abrindo novas oportunidades para os moradores da região.
Não se sabe ao certo quantos empregos serão criados, mas Matt George, diretor de negócios da Yeezy, disse que a marca espera ter uma produção agitada até o fim de 2020. Os trabalhos de design e prototipagem serão os primeiros a serem adicionados localmente. “É importante capacitar as pessoas antes executar os itens de vestuário”, disse West à Enterprise
Desde 2018, a Yeezy concentra sua produção na pequena cidade, depois que Kanye disse ter “seguido o Espírito Santo” até o local. Atualmente, a marca possui diversas instalações e um escritório em Calabasas, na Califórnia.
Pesadelo de marketing?
Um pouco antes da pandemia, em janeiro, a Gap anunciou uma outra parceria com a Telfar, marca do estilista nova-iorquino Telfar Clemens em ascensão no mercado norte-americano.
Tal como a recém-revelada colaboração com a Yeezy, o projeto, previsto para 16 de janeiro, destinava-se a vender peças de luxo a um preço mais acessível e ganharia uma festa de lançamento no Paris Fashion Week de setembro.
Porém, após adiar a chegada do compilado ao mercado por conta do coronavírus e fechar o acordo com Kanye, a gigante do varejo suspendeu o trabalho divulgado anteriormente, algo que não pegou bem na comunidade negra.
No dia que a notícia sobre o acordo chegou aos veículos especializados, na sexta-feira (26/06), ninguém sabia informar sobre o paradeiro das criações desenvolvidas para a Gap. Enquanto alguns consumidores começaram a questionar nas redes sociais da varejista, boatos de que a Telfar não tinha recebido qualquer compensação por parte da gigante da moda começaram a pipocar na mídia.
No fim de semana, a Gap finalmente confirmou a suspensão da colaboração, revelando que a label receberia 25% da taxa de concepção. “Embora tenhamos escolhido não avançar com a parceria, pagaremos a Telfar, em respeito ao seu tempo e visão”, afirmou a companhia em comunicado.
Alguns clientes, no entanto, não gostaram nada da notícia. “Achei que tínhamos conseguido a Telfar x Gap. Isso torna tudo um pouco agridoce. É como se a indústria da moda não permitisse dois negros no topo. Deveriam lançar ambas as coleções, como é feito quando brancos estão envolvidos”, tuitou Nandi Howard, editora assistente da revista Essence.
A situação, somada ao Black Lives Matter, pode evoluir para um pesadelo de relações públicas que nenhum departamento de marketing deseja, já que Kanye é bem próximo ao presidente Donald Trump, contrário às manifestações antirracismo. “Make America Gap Again”, tuitou um seguidor da marca em referência ao slogan de Trump.
Além disso, West coleciona polêmicas no mundo da moda e da música, algo que pode impactar nas vendas dos produtos ligados a ele. Em uma das mais conhecidas, por exemplo, o rapper pegou o microfone da mão de Taylor Swift enquanto a cantora agradecia um prêmio concedido pela MTV, em uma transmissão ao vivo. “Me desculpem, mas esse prêmio deveria ser da Beyoncé”, disse o artista em seguida, deixando todos surpresos com a atitude.
Não satisfeito, Kanye voltou a “cutucar” a colega na música Famous, lançada em 2016. “Eu sinto que talvez eu e Taylor possamos transar. Por quê? Eu fiz aquela vadia famosa”, diz a canção.
“Nas vezes em que eu parecia uma pessoa louca, tudo o que eu queria era gritar: ‘Nos ajude a ajudar mais! Eu dei tudo o que tenho. Eu me endividei. É tudo o que tenho para dar. Mas se eu tivesse um pouco mais de oportunidade, poderia dar muito mais”, comentou ele em carta à Paper.
Bom partido
Ainda que Kanye tenha irritado colegas da música ao longo da carreira, o rapper mostra ser um bom conhecedor do meio onde está inserido. Tanto ele quanto sua esposa, Kim Kardashian, entendem as engrenagens da moda e do entretenimento muito bem.
Após divulgar a parceria com a Gap, o artista lançou uma canção e um clipe, ambos impactantes, falando sobre a realidade dos negros nos EUA. Dias antes, ele já havia anunciado sua primeira linha de beleza: Yeezy Beauty.
Com a sequência de novidades, ele conseguiu se tornar o nome do momento na música, na moda e no bem-estar, potencializando todos os seus projetos e deixando todo mundo curioso a respeito dos próximos lançamentos.
“Pode ser assustador para as pessoas pensarem universalmente. Não é tradicional. Muitas pessoas querem garantir que as coisas não se tornem híbridas, mas a internet abriu todas as conversas. Esse cruzamento de ideias é necessário para nós, como uma corrida para evoluir”, destacou ele à Paper, em 2015.
Colaborou Danillo Costa