Conforto em evidência: poderiam os sutiãs sobreviver ao isolamento social?
Enquanto muitas mulheres relatam ter abandonado de vez as peças, especialistas contestam a relação dos acessórios com a saúde da mama
atualizado
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O distanciamento social mudou muitos de nossos hábitos, inclusive, no que diz respeito ao vestuário. Se as produções mais elaboradas podem ter sido esquecidas nos guarda-roupas devido à falta de eventos que demandem algo mais caprichado, para uma parte do público feminino, também já não há mais justificativa para investir em sutiãs. Depois de quatro meses sem bojos e arames apertando os seios, além do incômodo do fecho nas costas, abrir mão de usar a peça tem se tornado cada vez mais comum e chega a ser um grito de liberdade. Estariam os sutiãs a um passo da aposentadoria?
Vem comigo saber mais!
Símbolos do feminismo
O deslocamento da mão de obra masculina para as guerras do início do século 20 abriu espaço para as mulheres trabalharem no comércio e na indústria. Porém, os direitos trabalhistas permaneceram negligenciados até a segunda onda do feminismo, nos anos 1960. Ao fim daquela década, durante uma edição do concurso Miss America, cerca de 400 ativistas ameaçaram atear fogo em seus sutiãs, em resposta aos padrões de beleza que inferiorizavam a força de trabalho feminina.
A ocasião ficou marcada na história como “a queima de sutiãs”, embora o fogo nunca tenha sido realmente usado na manifestação. Por se tratar de um espaço privado, a ação incendiária foi controlada, mas a iniciativa contagiou aquela e as futuras gerações.
Desde então, o uso dos acessórios têm sido um debate constante entre as mulheres. Enquanto muitas ainda recorrem à sustentação proporcionada pelas peças, outras preferem abandonar a criação, presente na moda desde 1907, quando a Vogue fez um artigo para apresentar o então brassière.
Ambiente corporativo
Ainda que optassem por não usar sutiãs, algumas mulheres mantinham as peças em seu acervo para as ocasiões profissionais. Na última década, todavia, até mesmo no ambiente corporativo os acessórios modeladores perderam espaço.
Uma matéria do New York Post, publicada em fevereiro deste ano, reuniu diversos relatos de executivas que abandonaram o uso dos itens no mercado de trabalho. “Se meus colegas não precisam usar sutiã, eu também não preciso”, disse Dayna Kathan, integrante do programa Vanderpump Rules, do canal Bravo.
Ela não usa roupas íntimas há três anos e não polpou críticas. “Lembro-me de voltar do escritório e, no segundo em que chegava em casa, desabotoava o sutiã, como um prisioneiro que coloca a chave na fechadura da cela”, lembrou Kathan.
A especialista em carreiras Judith Gerberg explica que o comportamento é cada vez mais normal no cotidiano das empresas norte-americanas. “As millennials são muito autoconfiantes e, assim como os homens abandonaram as gravatas, nada impede que elas façam o mesmo com os sutiãs”, comentou, em entrevista ao TNYP.
Em Nova York, onde o não uso do acessório é um direito protegido pela lei que proíbe os empregadores de “aplicarem padrões de aparência ou requisitos diferentes com base no gênero”, a movimentação é cada vez mais frequente. A tendência é que, conforme as legislações de equidade avancem mundo afora, isso se normalize nos ambientes corporativos.
Fator diversidade
Desde que as marcas de lingerie passaram a contemplar os mais diversos tipos de corpos, opções mais confortáveis surgiram nas araras do segmento. Após a Victoria’s Secret, dona do que foi o maior império de underwear dos EUA, evidenciar o modelo push up (que levanta e aumenta os seios) em suas angels por 25 anos, deixando as consumidoras ainda mais descrentes a respeito do futuro dos sutiãs, etiquetas como Savage x Fenty e Third Love inovaram o mercado com criações mais confortáveis. As labels novatas, que abraçaram a inclusão desde sua concepção, apresentaram um respiro ao público feminino, que passou a repensar o consumo de lingeries e investir nos bralettes.
Desde o lançamento da Savage x Fenty, da cantora Rihanna, a saída de modelos esportivos corresponde a 42% das compras, em contraponto aos sutiãs push up, que representam apenas 6% do consumo da etiqueta. “Há 50 anos, a moda tentava fazer as pessoas prestarem atenção nos bralettes, mas hoje são eles que estão impulsionando a moda”, disse Ellen Lewis, especialista do setor de underwear, ao The New York Times.
Enquanto os formatos com arame são guiados por uma infinidade de combinações alfanuméricas, os bralettes se destacam pela simplicidade, indo do PP ao GG. “Os tecidos usados e as silhuetas menos estruturadas permitem um ajuste mais flexível”, disse Maddie Flanigan, designer de lingerie da Filadélfia, também ao jornal nova-iorquino. Ainda há um longo caminho a ser percorrido pelas marcas especializadas em roupas íntimas no Brasil, mas espera-se que indústria nacional acompanhe a movimentação do Hemisfério Norte, onde a inclusão e diversidade se traduziram em diversidade, aceitação e, é claro, lucros.
Esquecidos na gaveta
Se nos primeiros meses desta década muitas mulheres ainda se sentiam obrigadas a usar sutiã ao sair na rua, o isolamento social eliminou essa necessidade. “Eu simplesmente não vejo sutiãs voltando depois disso”, tuitou a escritora do Buzzfeed Tomi Obaro, em maio, obtendo mais de 500 mil curtidas.
Em uma pesquisa realizada pelo site Fashionista, até mesmo as leitoras que eram fãs dos acessórios disseram repensar o uso das peças. “Dane-se o sutiã para sempre, e olha que eu amo sutiãs”, respondeu uma entrevistadas.
Para Soozie Jenkinson, diretora de design da varejista britânica Marks and Spencer, a pandemia da Covid-19 apenas acelerou o desejo por conforto, já observado nas mudanças de consumo presenciadas no decorrer dos últimos anos. “As pessoas estão trabalhando de casa, provavelmente em turnos mais longos. As que estão na rua são profissionais da saúde ou voluntários. A última coisa que todos nós queremos é usar roupas íntimas desconfortáveis. Então, para aquelas que ainda estão dispostas a usar as peças, as opções mais buscadas são as mais leves e confortáveis”, afirmou ao The Guardian.
Emma Roddick, conselheira das autoridades de Londres, relatou ao veículo que parou de usar sutiã no início do confinamento. “Sempre que eu me arrumava de manhã, me perguntava: ‘por que preciso vestir um sutiã? Só vai ser desconfortável’. Me acostumei a não usá-los nos primeiros dois meses e agora estou pensando em abandoná-los de uma vez por todas”, disse.
Dona de seios grandes, a funcionária do governo sempre insistiu nos acessórios porque, de acordo com suas pesquisas, o uso de sutiãs não era negociável em sua situação. “Tudo o que ouvi antes foi: ‘você precisa de apoio’, ‘se não usar um, vai ter problema na coluna’, ‘será muito desconfortável’. Simplesmente não é assim”, garantiu ao The Guardian.
A escritora Chidera Eggerue, que parou de usar sutiã em 2017, criou até mesmo um movimento, chamado Saggy Boobs Matter (Peitos Flácidos Importam). “Para mim, vai além do conforto. É resistência a todos aqueles que nos obrigam a usar isso. Eu me conformava porque a sociedade me fez achar que meus peitos deveriam sempre estar durinhos, mas era muito desconfortável. Eu só quero poder aparecer como sou e não ser penalizada por isso”, defendeu ao The Guardian.
No Brasil, relatos como os de Soozie e Chidera são cada vez mais frequentes nas redes sociais. A tendência é que, após o distanciamento, os sutiãs caiam em desuso, também, em nosso país.
eu to tanto tempo sem usar sutiã q acho q nao vou usar nunca mais
— ana; (@baeluizy) July 6, 2020
eu vou tentar sair mais sem sutiã depois que a gente que dessa quarentena e os machos que lutem pra lidar com mamilos pois eu já cansei de usar sutiã obrigatoriamente por causa de homem, que inferno parece que não sabe o que é peito
— steph halpert ?moradora de Winden (@stephthesmiths) July 6, 2020
é oficial: não sei mais usar sutiã, brinco e sapato fechado pq tudo me aperta e acho desconfortável
como vou viver o pós quarentena? aguardem cenas dos próximos capítulos
— pretxinha (@tflupec) July 5, 2020
eu vou juntar de dinheiro pra comprar um sutiã de renda sem bojo não aguento mais usar os meus
— insta: mariaffc_ (@ffcdudex) July 3, 2020
Precisei sair de casa pra fazer o teste de covid e cheguei à conclusão que não consigo mais usar roupas que apertam como: calça jeans, cinto, sapato e sutiã. Quando acabar o isolamento, vou ter que trabalhar de chinelo e moletom.
— Cam (@formadaemtretas) July 3, 2020
Mano eu não vou mais usar sutiã
Nunca usei sutiã pq realmente precisava, só pq tinha vergonha, mas sinto muita dor usando esta merda então eh isso
Liberte suas teta— raulinha (@yo_lauritcha) May 20, 2020
acho que nunca mais vou usar sutiã, não conseguiria voltar praquele inferno
— ᵏᵉˡˡʸ (@ridikelly) July 3, 2020
O q mais mudará em você pós pandemia? Me: não vou conseguir mais usar sutiã.
— Marcella Polatschek (@Mpolatschek) July 2, 2020
Opinião dos especialistas
O sutiã como conhecemos existe há cerca de 100 anos. Substituto do espartilho, o assessório se tornou peça obrigatória no guarda-roupa feminino. Mas realmente precisamos dela?
Argumentos de longa data defendem que não usar sutiã pode afetar o ligamento de Coopers, prejudicar a postura e deixar os seios flácidos, já que a falta expõe as mamas à gravidade. No entanto, essas afirmativas devem ser levadas em consideração por pessoas que têm peitos muito grandes, flacidez precoce ou dores crônicas nas costas.
“Usar um sutiã pode ajudar a frear a flacidez prematura e evitar problemas de postura em alguns casos, mas é importante lembrar que a principal razão para os seios caírem é a idade, não as nossas escolhas de roupas íntimas”, argumentou o cirurgião plástico Dirk Kremer, ao Yahoo.
Fora esses casos específicos, a opção pelo uso dos objetos é estética. “Alguns estudos indicam que o sutiã não interfere na saúde das mamas. Muitas mulheres usam por achar que as peças vão evitar os seios de caírem, mas, tirando os casos onde são volumosos, o que vai impedir a flacidez é a alimentação e a prática de atividades físicas. É melhor ingerir bastante proteína e fazer musculação do que usar sutiã. A falta do mesmo não tem consequência estética”, revela Rita de Cássia Barbosa, mastologista do Centro de Oncologia do Hospital Santa Lúcia, à coluna.
Ao revelar que um estudo francês, ainda em andamento, revelou que 60% das mulheres estão deixando de usar o acessório, a especialista faz um alerta às mulheres que optam por vesti-lo. “Devem ser trocados todos os dias. Usar o mesmo sutiã dois ou três dias pode favorecer o surgimento de fungos e doenças de pele”, enfatiza.
Para Gary Ross, cirurgião plástico consultor do BMI The Alexandra Hospital, é mais provável que os acessórios causem problemas em vez de benefícios. “Se um sutiã estiver mal ajustado, pode causar dores crônicas nas costas e o aumento da pressão no diafragma, o que poderia resultar em problemas respiratórios e digestivos. Erupções cutâneas também são possíveis”, explicou ao Yahoo.
Jean-Denis Rouillon, pesquisador e especialista em ciências do esporte, disse à France Info (rede de rádio francesa) que os seios tendem a ficar mais frágeis e desarmônicos com o suporte dado pelos sutiãs, já que um de seus estudos revelou a “deterioração da orientação das mamas” nas mulheres que abandonam os sutiãs em idade avançada.
A vez dos pijamas
As marcas de lingerie têm alcançado bons resultados durante o isolamento social. Prova disso é o crescimento de 400% nas vendas da etiqueta Hope. Todavia, os responsáveis pelo sucesso das empresas não são as calcinhas e sutiãs. São os pijamas que estão com tudo durante a pandemia.
“As pessoas procuram peças mais casuais e confortáveis neste momento. Nossa linha de athleisure também aumentou bastante, e essa tendência veio para ficar. Temos de levar em consideração o que os clientes vão querer comprar a partir de agora, o que será importante e relevante. As pessoas não vão continuar consumindo como antes”, avaliou Sandra Chayo, diretora de marketing e estilo do Grupo Hope, em live feita no Instagram da revista Vogue Brasil.
Segundo a empresa de marketing Edited, as vendas de pijamas, chinelos e tricôs nos EUA subiram 13% em relação a março do ano passado. Na Adore Me, marca de lingeries que compete com a Victoria’s Secret, o sutiã mais vendido perdeu seu posto de best-seller para um pijama.
Apesar de a etiqueta íntima Okko ter reduzido seu orçamento de publicidade em 50%, as vendas da label aumentaram 20% em abril. “Os clientes são atraídos por estilos suaves e aconchegantes”, frisou Kate Fitzsimons, analista de ações da RBC Capital Markets.
Corrida contra o tempo
As empresas de lingerie já estão atentas ao declínio dos sutiãs, mas elas não pretendem deixar as mulheres desistirem dos itens tão fácil assim. Ra’el Cohen, chefe do escritório criativo da Third Love, aposta todas as suas fichas na coleção Pima, feita em algodão e viscoelástico (aquela espuma dos travesseiros Nasa). De acordo com ela, a linha se tornou a mais popular da companhia durante a quarentena, indicando que as mulheres estão dispostas a voltar a investir em sutiãs se os mesmos não carregarem arames de sustentação.
Além de pesquisar materiais macios que fornecem suporte sem sacrificar o bem-estar, as labels também estão melhorando a experiência de consumo desenvolvendo plataformas virtuais com ferramentas para encontrar o modelo perfeito para cada mulher, sem a necessidade de experimentá-lo fisicamente.
Enquanto a ThirdLove trabalha no aprimoramento de seu Fit Finder, a Marks and Spencer aposta em dicas e ilustrações que orientam as consumidores na hora de encontrar acessórios adequados e desenvolve experimentos para criar opções mais ajustáveis, como um sutiã com inclinação de 360 graus que se move com a pessoa que o veste. Já a Savage x Fenty, da cantora Rihanna, lançou a campanha Free the Nipple, que defende a prática do topless, e apresentou modelos que não alteram o movimento natural dos seios e disfarçam o mamilo.
Conforto em primeiro lugar
Até o início do ano, a Zion Market Research, empresa que promove pesquisas mercadológicas, identificou que o mercado global de lingeries valeria US$ 59 bilhões até 2024, bem acima dos US$ 38 bilhões registrados em 2017. Contudo, essa informação deve sofrer alterações perante a nova realidade de isolamento social, por tempo indeterminado, que leva a um novo comportamento do público feminino.
Ao passo que há a opção de nos libertarmos de vez dos arames de sustentação, e da sensação de estarmos amarradas, as etiquetas de roupas íntimas terão que se adequar à nova realidade. A partir de agora, a meta será oferecer produtos que concedam conforto e liberdade de escolha.
Colaborou Danillo Costa