Nada me emociona mais do que audiências de adoção na Vara de Infância
Tirando os casos feios de fraude, por trás de um processo desses de adoção tem normalmente alguém tomado pelo amor
atualizado
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Exercer a profissão de juiz é ver bem de perto muitas dores, alguns alívios, e, via de regra, todo o resto do cardápio dos sentimentos humanos, sobre os quais, inclusive, essa coluna se dedica a falar um pouco.
Mortes, estupros, roubos, divórcios, violências, traições, falências — sonhos, vidas, dignidades que se espatifam no chão das casas, das empresas, nas calçadas das ruas, no coração das pessoas e vão parar na Justiça, chamada depois para vir catar alguns dos caquinhos ainda possíveis de serem cuidados.
Apesar de tanto “material”, a verdade é que nada, nesses anos todos, me emocionou mais do que as audiências de adoção na Vara de Infância.
Não as que fazemos, aos montes, com grávidas que querem dar os filhos em adoção após o nascimento – essas ficam mais para uma machadada na alma do que para emoção. Falo das audiências em que uma pessoa quer adotar outra. Segundos maridos de mães com filhos do primeiro relacionamento. Tias que ficaram com os seus sobrinhos por um motivo ou outro. Avôs, madrinhas, às vezes até a vizinha, que foram cuidando, cuidando, cuidando do menino do lado e agora, passados os anos e sumidos os pais, querem poder dizer para todo mundo o que já é tão óbvio: essa criança é minha.Tirando os casos feios de fraude, por trás de um processo desses de adoção tem normalmente alguém tomado, às vezes furiosamente, pelo amor. Amor que não está nem aí para a genética, para a aparência, para o sobrenome. Amor que transborda para chegar até a menina desconhecida, o garoto doente (e rejeitado por isso), o adolescente que vive desde sempre em um abrigo, o parente longínquo, o menino de rua.
Amor por quem não tem o seu sangue, mas que se ligou a você pelos fios sedosos e poderosos do apego ou da perspectiva do apego, esse que nasce ou vai nascer da convivência, do dia a dia. Um amor que vem da mera disponibilidade que se tem ou que se quer ter para o outro, do simples (simples?) fato de cuidar de alguém.
Isso é de uma beleza, mas de uma beleza tão descomunal que já escrevi e apaguei não sei quantas vezes essas linhas aqui. Simplesmente não consigo descrever o suficiente o “tamanho” do que já vi, como juíza, por aí nesse terreno. Aqui vai um caso.
Lembro-me de um homem de meia idade que tinha se apaixonado por sua mulher e com ela se casado há alguns anos. Quando a conheceu, ela tinha dois bebês gêmeos de menos de seis meses de idade, mas ele não se importou. O pai dos bebês tinha se escafedido, mas ele não se importou. Dava muito trabalho cuidar daqueles bebezinhos, mas ele não se importou. Custava caro sustentar-lhes, mas ele não se importou.
Passados 10 anos, o pai genético se importou. Citado no processo de adoção que o pai verdadeiro (sim, vou lhe chamar de pai verdadeiro) moveu, resolveu, sabe-se lá por que, se opor.
Estamos, então, na audiência. O pai “contra” simplesmente não apareceu. Ouvi o pai verdadeiro e o amor por aqueles filhos lhe saía por cada poro. Era lindo de ver. Chegou a hora de fazer os filhos entrarem. Não me esqueço que estavam com o uniforme da escola e muito desconfiados; não entendiam bem o que estava acontecendo. Perguntei alguma coisa sobre eles considerarem o “pai verdadeiro” realmente o pai deles. Um olhou para o outro e depois para o pai e lhe perguntou: “pai, o que ela quer dizer? Como assim?”
O “pai” saiu da boca da criança tão caprichado, tão naturalmente sublinhado por ela, que encerrei ali mesmo a audiência, dando-me por satisfeita com as provas e até sentindo uma ponta de vergonha de estar submetendo aquela família tão família a qualquer “teste de família” que pudesse haver.
Virei-me para o pai e disse que o pedido de adoção seria julgado procedente e, não que precisasse, mas a partir de então seria oficialmente o pai daquelas crianças para todos os efeitos. Ele me respondeu com uma só observação: “Obrigado, doutora, por não ter perguntado muito. Eles vieram para cá direto da escola e não almoçaram ainda.”
Mais pai, impossível.