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Sem meus analistas, eu não teria atravessado o Eixão às seis da tarde

Escutar o outro é, das profissões, uma das mais solitárias e solidárias. Mas há amigos que sabem ouvir como se tivessem estudado Freud

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1 de 1 eixao_montagem - Foto: Arte/Metrópoles

Tive cinco analistas, todos freudianos, desde os 28, e até hoje, em sessões eventuais quando, sozinha, não consigo me alcançar.

A psicanálise me pôs no colo quando Brasília não deixou sombra onde eu pudesse me esconder. A cidade construída entre abismos nos empurra para o sombrio de dentro. Ainda não havia construído uma trama de afetos brasilienses e o deslumbramento com o estar morando na capital do país, de conviver com repórteres que cobriam o Palácio do Planalto, o Supremo, o Congresso, tudo isso me deu certa excitação sobre fundo falso.

Meu primeiro psicanalista já morreu. Um homem diferente, exuberante, de pensamentos contundentes, que me apontava lugares para os quais eu nunca havia olhado. Um dia, finda a sessão, sob a luz mortiça do consultório, ele me pediu para esperar um pouco. Acendeu o abajur sobre a mesa, abriu um livro e leu pra mim: “Entre areia, sol e grama/o que se esquiva se dá/enquanto a falta que ama/procura alguém que não há.”

Era Drummond percebendo o amor como o lugar que ocupa o vazio, essa perdição abissal que há em todos nós.

Tive três analistas homens e duas mulheres. E posso dizer que havia diferença de gênero na escuta. Mas o que mais me chama atenção é que cada um me mostrou uma Conceição – talvez até porque eu era outra a cada novo analista, mas me arrisco a dizer que também era porque a análise se dá no encontro de dois humanos, embora o psicanalista tenha, por dever de ofício, de deixar em casa desejos, crenças, preconceitos, para, num esforço supremo, não se misturar com aquele a quem escuta.

Foram cinco, mas um só, porque foi da conjunção das cinco escutas distintas que dei conta de atravessar o Eixão às seis da tarde e chegar viva do outro lado. A psicanálise me ensinou montanhas de coisas, uma delas a de me ouvir e a tentar ouvir o outro naquilo que não sabemos que estamos dizendo. E a assumir as responsabilidades pelos meus erros e acertos, pelas minhas covardias e minhas coragens, pelo meu desejo. A ética da psicanálise é das coisas mais belas que há na invenção do doutor Freud.

Aprendi também que a escuta rigorosa do outro não é só atributo do psicanalista. Tive e tenho amigos com incrível capacidade de me ouvir, me perceber e me devolver a mim mesma. Alguns me disseram coisas que eu ouviria mais tarde no divã.

Dois dos meus analistas já morreram. Chorei como quem perdeu alguém de dentro de casa, de dentro do meu coração.

Não há profissão mais solitária do que a de um analista – talvez a dos artistas. Habitam as profundezas do humano, lugar aonde só se chega sem casca, com a nudez dos nascentes, para no instante seguinte vestir a pele da superfície. Vão do escuro ao claro, do claro ao escuro, nos labirintos da alma humana, a dos outros e a de si mesmo.

O fato de três de meus analistas estarem por perto me deixa um pouco mais tranquila. Quando o bicho pega e me vejo sozinha no meio do Eixão, às seis da tarde, peço uma sessão. No mesmo instante, antes mesmo de chegar ao consultório, surge um fio que me leva, com mais ou menos aflição, ao outro lado do perigo.

Uma das minhas analistas me disse, muitos anos atrás, que a vida é isso: um saltar contínuo sobre abismos.

“No solo vira semente?/Vai tudo recomeçar?/É a falta ou ele que sente/o sonho do verbo amar”. (A falta que ama, Carlos Drummond de Andrade).

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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