Qual a cor do burro quando foge? Ou como fugir da cor da pele
Seguem algumas dessas definições que o brasileiro deu à tinta que lhe cobre o corpo e esconde a alma. É uma lista antiga, mas que vale até hoje
atualizado
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Quando eu era menina, meu pai dizia que eu tinha cor de burro quando foge. Eu ficava no ar, sem saber o que ele queria dizer com aquilo. Instalava-se um vazio – como se ele quisesse me apontar alguma coisa sobre a qual nem ele mesmo sabia. Ficávamos os dois no vácuo da identidade racial brasileira. (Ele, filho de negro com portuguesa. De pele clara, com traços e cabelos de evidente negritude).
Cor de burro quando foge é a corruptela de outra expressão, corro de burro quando foge – que no sentido original queria expressar a aflição de alguém que corre ante o perigo, como quem corre de um burro desenfreado.
De fuga em fuga, ficamos todos, meu pai, eu e o Brasil sem lugar na paleta das cores da pele humana e no que nela está implicado. Só o burro está certo de si mesmo, porque mesmo em fuga nunca deixará de ser placidamente burro (o substantivo, não o adjetivo).
Procurando a origem da expressão, cheguei a 135 termos que o brasileiro usa ou pelo menos usava para definir a cor de sua pele. O registro foi feito na PNAD, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, de 1976, quando, pela primeira vez, o IBGE perguntou ao brasileiro de que cor ele era e cada entrevistado pôde responder livremente com a palavra ou expressão que lhe viesse à cabeça.
Colhi algumas das definições e tentei separá-las por tonalidades próximas.
Branco — nem os brancos são somente brancos, porque não os há neste país mestiço. As variações foram muitas: galega (loura), agalegada, alvarenta (no dicionário: alvacento, esbranquiçado, um tanto louro), clara, clarinha, cor-de-leite, loura clara (não basta ser loura, tem que ser clara), polaco (gentílico antigo de quem nasce na Polônia).
Moreno (ou pardo, como o burro) — são muitas as variações de moreno: branca-suja (que seja branca, mesmo que suja), branca-queimada, branca-melada, meio-branca, pouco-clara, pouco-morena, puxa-pra-branca, acastanhada, alva escura (negra, mas branca), bem morena, bronzeada, cabocla, castanha, castanha-clara, cobre, corada, cor-de-canela, esbranquicento, fogoió (adjetivo que designa cabelo avermelhado), miscigenação, mista, morena, morena-castanha, morena-clara, morena-cor-de-canela, morena-jambo, morenada, morena-parda, jambo, morena-roxa, morena-ruiva, morena-trigueira, pálida, paraíba, parda, parda-clara, queimada, queimada-de-praia, queimada-de-sol, regular, rosa-queimada, ruço (pardo-claro, no dicionário), trigo, trigueira.
E, finalmente, negro, dito em eufemismos escorregadios: cardão (cor azul violácea da flor do cardo), escura, azul (“de tão preto, chega a ser azul”), bem morena, bugrezinha-escura, café, canela, castanha-escura, cor-de-café, cor-de-cuia (pode ser a cuia preta de Belém do Pará como a cabaça marrom do Nordeste), cor firme, crioula, encerada (no dicionário: diz-se do animal cujo pelo tem a cor acastanhada), enxofrada (misturada), escura, escurinha, morena-bem-chegada, morena-bronzeada, canelada, morena-escura, morena-fechada, morenão, meio morena, meio preta, lilás, moreninha, mulatinha, retinta, roxa, sapecada, sarará, tostada, negrinha, negrota, pretinha.
Alguém entre os brasileiros entrevistados naquele distante 1976 definiu a cor da própria pele como sendo uma cor de marinheiro. O dicionário registra entre as acepções da palavra marinheiro a de estrangeiro. Faz sentido: somos estrangeiros em nossa própria pele.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.