Os meninos, a finca, a pipa, o pé de açaí e a inveja do pênis
Lembranças de uma menina que invejava a destreza e a coragem dos amiguinhos de infância. E uma enquete com mulheres entre 30 e 70 anos
atualizado
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As nuvens foram embora, os ventos estão chegando e com eles as pipas nos céus das cidades ao redor do Plano Piloto. Daqui a alguns dias, com as férias escolares, as RAs estarão enfeitadas de passarinhos de papel. Meninos pequenos, meninos adolescentes, meninos homens, haverá deles de todas as idades empinando pipas nas quadras mais distantes do emaranhado de redes elétricas. Um fascínio sob o Sol que o celular não derrotou.
Das muitas coisas que quis fazer e não fiz, uma delas é empinar papagaio, como são chamadas as pipas em Belém. Naquele tempo, e até hoje, só os meninos soltavam pipas. Era e continua sendo raro ver uma garota segurando uma linha que tem na outra ponta um pássaro que dança ao vento e balança a rabiola atado à terra pelo desejo de seu dono. Até que tentei pôr uma pipa no ar, mas no primeiro fracasso, desisti. Era muito menino à minha volta rindo de minha falta de jeito e me dizendo que eu ia me ferir com o cerol da linha.
E quando eles se juntavam para quebrar vidro e fabricar o cerol! Que inveja de uma brincadeira tão perigosa. Ao mesmo tempo, me sentia mais menina diante dos meninos poderosos, que se arriscavam afiando linha, avoando pipa e correndo atrás das que conseguiam cortar no ar. Tudo aquilo me fascinava. A destreza, a paciência, as manobras para derrubar o adversário, a coragem para correr atrás da pipa que caia onde o vento quisesse, a disputa de poder, tudo atiçava em mim o pênis que não faz parte do meu corpo físico.
Havia outra brincadeira, ainda mais perigosa: a finca. Eles faziam as fincas amolando pedaços de ferro no cimento – passavam hoooras esculpindo as armas com as quais iam riscando caminhos no chão de terra, em mais uma disputa com o adversário.
Só agora, pra escrever esta crônica, entendi o jogo de finca. O dicionário me ensinou que é uma “disputa entre dois participantes que consiste basicamente em um adversário alcançar a posição do outro e retornar, sem se cruzarem, cada qual traçando o seu caminho com um ferrinho que é arremessado ao chão”.
De todas, a mais perigosa das façanhas dos meninos da minha infância paraense era a arte perigosa de subir no açaizeiro. Era arriscado e era mágico; era um escalada e era uma dança; era viril. Os meninos punham a peconha nos pés (uma peça feita da palha do açaí ou de pano, em círculo como uma roda de bicicleta) e iam escalando o tronco fino e comprido do pé de açaí até chegar ao cacho lá em cima. Eram meus heróis aqueles caboclinhos de pele cor de castanha.
Depois que me veio essa saudade dos meninos da minha infância, perguntei a algumas amigas, de idades entre 30 e 70 anos, se elas tinham inveja do pênis, a articulação freudiana que simboliza a inveja do falo e, portanto, do poder que as mulheres teriam dos homens. O feminismo, em geral, discorda desse Freud.
A maioria das entrevistadas disse que não tem inveja do órgão sexual masculino, mas dos privilégios e facilidades que esse músculo assegura a quem o tem.
Uma delas me disse que sim, que na infância sentia que o irmão tinha algo mais do que ela.
Dentre as que não têm inveja, uma disse que acha “estranho ter uma parte do corpo pendurada entre as pernas, uma coisa que, dizem, praticamente tem vontade própria.”
Uma psicanalista disse que nunca se sentiu “numa categoria abaixo” da dos homens. Acredita que seja porque vem de uma família na qual as mulheres sempre foram muito independentes.
Uma das mais velhas dentre as que ouvi disse que nunca teve inveja do pênis. Sempre que foi necessário, socou a mesa como um homem, mas se “sentindo mulher com liberdade para agir de um jeito próprio.”
Uma doutoranda em literatura disse que sim, que algumas vezes tem inveja de tudo o que o falo representa. E de fazer xixi em pé.
E, finalmente, uma filha de santo disse que acha incríveis as manifestações físicas do pênis: a ereção, a ejaculação, a anatomia em si. No candomblé, ela me contou, Exu é o falo. “A maioria das esculturas que o representam têm falo. No começo, achei uma coisa meio machista, e talvez seja mesmo. Mas depois consegui vê-lo como elemento de força. Segura e vai. Então, eu fico buscando esse falo em mim pra me fortalecer.”
Quanto a mim, gosto de ter por perto meninos que empinam pipa, jogam finca, sobem em açaizeiro. É como se eles fossem a parte de mim que não está no meu corpo.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.