O samba sempre nos salva. Em Brasília, ele resiste nos quatro cantos
O samba vem nos salvando desde que as primeiras tias baianas alimentavam de feijão, cachaça, ritmo e coragem o nascedouro do samba
atualizado
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Beth está atordoada, muito doente. Faz um bom tempo que padece de problemas na coluna, agravados por outros que a idade, 72 anos, vem trazendo. Numa cama de hospital, chama pelos amigos do samba e eles não são poucos. Há mais de 30 anos, ela apresentou ao Brasil um menino magrinho, de rosto fino e olhar malicioso. Os dois cantaram juntos “camarão que dorme a onda leva, hoje é dia da caça, amanhã do caçador”. Era Zeca Pagodinho, um dos muitos sambistas de quem ela é madrinha.
Quem atende ao chamado de Beth são os Prettos, dois irmãos que ajudaram a mostrar a qualidade do samba paulistano. Improvisam uma rodinha com uma música melancólica que a sambista gravou no início dos anos 1990. “E depois, quando a festa acabar, que vai ser dessa vida? Vai voltar ao que era antes de passar pela avenida… Que será desse mundo de branco e azul quando o som das pastoras emudecer, e o som da batida do surdo parar igual um coração para de bater?”
Pouco importa, é samba. Deitada e entubada, a paciente dança com os braços, batuca com a palma da mão, cantarola. Beth Carvalho renasce para o que a conduziu por toda a vida. Salva-se por alguns minutos.
O samba faz isso com a gente. Nos salva. Vem nos salvando desde que as primeiras tias baianas alimentavam de feijão, cachaça, ritmo e coragem o nascedouro do samba. Depois, elas colaram no Rio de Janeiro e deu no que deu.
Fazia tempo que o Brasil não sambava tanto. No mau sentido e no bom também. Brasília é um pequeno retrato dessa invocação do samba em hora tão grave. Todo dia tem um samba. E não é qualquer pagode facinho e vendável. É samba de raiz, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Candeia, dona Ivone, Manaceia. O Setor Comercial Sul agora é também Setor do Samba Sul.
A cuíca, o cavaquinho e o tam-tam nunca foram tão felizes na maquete do doutor Lucio.
Tem gente que precisa do samba pra não morrer, ainda mais agora, que morrer ficou tão fácil. É um grito de desespero e de resistência, primeiro uma, depois a outra. No SCS, os moradores de rua sambam ao lado dos que têm onde morar. No Outro Calaf, uma roda de samba só de mulheres, do vocal ao surdo, do bandolim ao tamborim. No Conic, o samba que teve de sair temporariamente da Rodoviária.
Numa sobreloja da 514 Sul, ao lado de uma igreja evangélica e em cima de um centro espírita, o samba chorava na noite de quinta-feira passada: “Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil. Um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou… E de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra, quando pode cantar, canta de dor”. Clara Nunes para nos salvar.
Domingo é dia de samba no Círculo Operário do Cruzeiro. E eu, porque preciso me salvar, vou sair na verde e rosa neste Carnaval de desespero e resistência. Vou cantar, na avenida, o Brasil, meu nego, meu dengo, como diz o samba-enredo:
“Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar. Na luta é que a gente se encontra. Brasil, meu dengo, a Mangueira chegou, com versos que o livro apagou, desde 1500. Tem mais invasão do que descobrimento, tem mais sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado. Mulheres, tamoios, mulatos. Eu quero um país que não está no retrato.”
O Brasil de Marias, Marielles, malês, um Brasil para nos salvar.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.