O que um arquiteto pode nos ensinar sobre a condição humana
Novo professor emérito da UnB aproveita cerimônia para mostrar o quanto a humanidade pode ser cruel e o quanto pode ser bela e fascinante
atualizado
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Os arquitetos estão para Brasília como os marinheiros para o mar, conteúdo e continente. São eles, os mestres da arte de inventar lugares, que nos ensinam a decifrar a maquete. Mesmo quando discordam entre si, e já discordaram muito mais, eles abrem a caixa de enigmas da capital. Os arquitetos nos fazem mais brasilienses.
Um dos mais admiráveis professores de arquitetura de Brasília, Frederico de Holanda mora numa casa igualmente admirável, escreveu livros que são adotados nas escolas, produz documentários, orienta doutorandos e, aos 75 anos, recebeu na terça-feira passada (02/07/2019) o título de professor emérito da UnB, a mais alta honraria para o corpo docente de uma universidade. (O título de doutor honoris causa pode ser outorgado a quem não é da comunidade acadêmica nem tenha curso superior).
As cerimônias desse tipo costumam ser laudatórias e emotivas, mas a do professor Frederico de Holanda teve um tom mais abrasivo, de protesto e de afirmação. Protesto contra os ataques que as universidades públicas têm sofrido nestes terríveis tempos e de afirmação do conhecimento e do tão ameaçado respeito à alteridade. Teve Bach e poesia, Marielle e Picasso.
Um professor emérito tem de mostrar de onde veio. E Holanda atou as pontas de sua formação intelectual: desde o pai romancista premiado na II Bienal de São Paulo (ao lado de João Cabral de Melo Neto) ao orientador de mestrado e doutorado que lhe apontou a implicação social do mais banal projeto de arquitetura e às leituras de pensadores que reforçaram no professor a responsabilidade moral de cada um de nós.
Holanda poderia se restringir à formação acadêmica, mas incomodou a plateia com imagens dantescas: a dos sucessivos genocídios na história da humanidade – dos índios, das vítimas do stalinismo e do maoísmo, da escravidão, do nazifascismo. “E novas facetas, o genocídio continua no Brasil, na morte de jovens, negros e pobres nas periferias das grandes urbs e nos mais recônditos assentamentos na cidade e no campo.” Surge, na tela, a imagem de Marielle Franco, com a pergunta que ressoa no auditório: “Quem mandou matá-la?”
Não há descanso nem mesmo para um professor emérito.
É o sintoma contundente de alguém que se constitui de genoma e socionoma, neologismo que Holanda usa para dizer do seu compromisso com o coletivo, com o que diz respeito a todos, à alteridade tão acossada por esses tempos extremos.
Mas temos a arte a ciência, de onde surgem “as mais fascinantes realizações humanas”. Holanda cita um prelúdio de Bach; a Teoria da Relatividade, de Einstein; Guernica, de Picasso; “Memórias Póstumas de Brás Cuba”, de Machado de Assis… e o Palácio do Itamaraty, de Oscar Niemeyer. “Na minha visão, a mais importante obra e arquitetura de todos os tempos e lugares”.
Surgem imagens do palácio, da escada flutuante, dos vãos abertos para o lá-fora, dos jardins de Burle Marx. Talvez seja um exagero do professor, mas o exagero pode chegar a um lugar que o comedimento não alcança.
O novo professor emérito conclui com esplendor: declama Fábula de um arquiteto, de João Cabral de Melo Neto:
“… Onde vãos de abrir, ele foi amurando/opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero,/com confortos de matriz, outra vez feto.”
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.