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Negra? Eu?! Demorei mais de 30 anos para aprender a ser preta

Segui por algum tempo sustentada no abismo, até que um dia ouvi o desabafo doloroso de uma repórter, a admirável e amada Juliana Cézar Nunes

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Daniel Ferreira/Metrópoles
Silhueta de mulher negra com as mãos em cabelo crespo
1 de 1 Silhueta de mulher negra com as mãos em cabelo crespo - Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles

Não nasci negra, mas desde muito menina meu cabelo me dizia que eu era de outra turma. Fui criada em Belém, terra de caboclos, meio índios, meio negros.

Se minha pele não era preta como carvão, talvez eu não fosse negra. É provável que algo em mim menina tenha formulado essa conclusão para não complicar ainda mais a minha vida.

Meu cabelo pixaim e eu fomos estudar num colégio de elite que hoje é a escola particular mais antiga em atividade no Brasil.

Minha amiga mais próxima, carne e unha, tinha a pele tingida de preto e os cabelos lisos. Colávamos uma na outra e eu não sabia por quê. Que eu me lembre, éramos as duas únicas negras na escola rica. (Negra? Eu?!)

Algo havia em mim que desagradava as freiras do colégio e eu não sabia exatamente o que era. Talvez soubesse, mas não dava conta de saber. Os professores também não me davam muita bola, não me davam nenhuma bola, embora eu me saísse muito bem nas provas e fosse humilde, como quem agradece por ser recebida no meio dos brancos e ricos.

Olhando agora, percebo que eu aceitava a minha condição de alguém fora de lugar. Engolia o mal-estar e tocava o barco; era angustiado e acuado o meu barquinho.

Havia um consolo: a maior autoridade da escola me recebia todas as manhãs com um olhar amoroso, um sorriso sereno e um manto de ouro. Era a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que passa o ano inteiro na capela do colégio e só sai para o Círio.

Já estava na faculdade quando uma amiga branca me perguntou de supetão: “Você se acha branca ou preta?”.

Achei a pergunta ofensiva. Não me lembro o que respondi. Devo ter balbuciado algo que não queria dizer nada.

Poucos anos depois, repórter de polícia, ouvi um delegado branco – minha melhor fonte – perguntar ao telefone: “Aquela repórter negrinha?”. Novo mal-estar, meu e dele.

Já estava com mais ou menos 25 anos e ainda não era negra. Talvez me achasse uma mulata, o que era nada. Era um vazio, como diz Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro: “Posto entre os dois mundos conflitantes – o do negro, que ele rechaça, e o do branco, que o rejeita –, o mulato se humaniza no drama de ser dois, que é o de ser ninguém.”

De outra vez, uma amiga nisei, numa noite de umas cervejas, me atacou: “Sou mais negra que você.” Novamente fiz de conta que não era comigo. Eu não sabia o que era ser negra. Em minha casa, de mãe filha de negro baiano e de índia de Parintins (AM), éramos fantasmas fantasiados de branco.

Segui por algum tempo sustentada no abismo, até que um dia, subeditora de Cidades no Correio Braziliense, ouvi o desabafo doloroso de uma repórter, a admirável e muito amada Juliana Cézar Nunes. Pautada para cobrir um show no Ginásio Nilson Nelson, ela foi atacada por um grupo de jovens brancos que a acusavam de ter a pele preta.

Juliana nunca soube disso, mas eu não a achava negra, porque ela tinha os cabelos longos, de cachos graúdos, e é de uma beleza sublime. Entenderam, né? Se é bonita, não é preta.

A dor, a indignação e o sentimento de impotência diante do sofrimento da querida Ju deram cor ao meu corpo, ao meu cabelo, à minha alma.

Sob a inspiração de Juliana, fiz uma série de reportagem sobre os negros na capital do país – a pele preta está confinada nas cidades-satélites mais pobres, nas portarias dos blocos, nos balcões de serviços e, porque agora é chique, nas lojas de grifes estilo revista Vogue.

Durante a publicação dos depoimentos de negros e negras brasilienses, recebi vários e-mails de leitores indignados – não exatamente com o relato sofrido das personagens, mas com o que consideravam um exagero e uma invenção da repórter e de seus entrevistados. A série ganhou o Prêmio Abdias Nascimento.

O que me fez negra, depois de todo esse percurso de negação, medo e vazio, foram as pretas e os pretos que puseram diante de mim o espelho da minha cor, no ombro a ombro, no igual para igual. A leitura de Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, foi fundamental.

Há uma história que me constitui: é a história do meu país, do povo do qual faço parte. É trágica, é cruel, é sofrida, é funda, é forte, é potente, é criativa, é alegre, é solidária. É uma ferida que não para de sangrar, mas só a partir dela poderemos construir de fato, algum dia, uma nação, a de maior população negra fora da África.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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