Encantos invisíveis: poesia concreta na pele das superquadras
Descubra o belo imperceptível na domesticada arquitetura moderna de Brasília. Em cada quadra, uma obra de arte em estado de arquitetura
atualizado
Compartilhar notícia
Disseram que ela era monótona e, por eterna, eternamente monótona. Que uma quadra era igual a outra e a outra e que assim os olhos se esqueceriam de olhar. Confundiram delicadeza com monotonia – como as folhas das árvores que muito se parecem, mas nenhuma é igual à outra.
Tem de se dispor a ver o que a vista, no imediato, não alcança. Tem de ter precisão de ver (“navegar é preciso”), ver pra não morrer, pra descobrir o belo quase invisível na domesticada arquitetura moderna. Como se um microscópio de cidades revelasse a beleza imperceptível das folhas-fachadas dos blocos das superquadras.
Há autoria em cada uma delas. Arquitetos ofuscados pelo gigantismo de Oscar Niemeyer se dobraram, anonimamente, sobre a prancheta para fazer poesia concreta ao modo dos poetas concretistas só que com palavras de pedra. Poesia em estado de arquitetura.
São muitos e quase desconhecidos (fora da academia e dos escritórios) os arquitetos que penduraram poemas nas fachadas dos blocos de seis e três andares das superquadras. E há muita gente que nem se dá conta e muito mais os que querem trocar a poesia concreta por vidros de perfume porque não sabem que têm uma obra de arte (tímida, silenciosa) na fachada do prédio.
Os blocos da Asa Sul são mais ricos em fachadas-poema-concreto porque são mais antigos que os da Asa Norte. Foram construídos com a febre de criatividade moderna que contaminou a arquitetura brasileira entre os anos 1930/1960 e até um pouco mais. Embora feitas da aridez do concreto, as fachadas são tão diáfanas quanto as flores das árvores que as rodeiam. E florescem o ano inteiro, a vida inteira – a menos que um condomínio saudoso da breguice do novo-rico queria (e como querem) trocar Tarsila do Amaral por Romero Brito.
O fotógrafo Myke Sena, do Metrópoles, passou uma tarde apreciando e clicando, verso por verso, a poesia concreta pendurada nos blocos residenciais da Asa Sul.
Nada é gratuito nas fachadas. Há uma homenagem ao projeto que inspirou as superquadras, o Parque Guinle, que Lucio Costa projetou na década de 1940. Há poesia feita com materiais pré-moldados, como criança brincando de quebra-cabeça. Há recuos, avanços, brises, placas de alumínio, vidraças transparentes, janelas basculantes, variações de grafismos nos cobogós, relevos, reentrâncias.
É a pele das superquadras, de poros poéticos, feita por arquitetos que buscavam a beleza e a funcionalidade, que experimentavam tecnologias novas sem a pressão do mercado e num tempo em que os brasileiros se encantavam com as novidades modernas. Ao contrário do que se pensa, não era mais do mesmo, era um outro para o outro. Como num desfile de beleza – febre nos anos 1950/1960 – só que em vez de pernas torneadas, quadris largos e cintura fina, cobogós redondos, brises esguios, esquadrias elegantes.
Entre os arquitetos-poetas estão: Milton Ramos, João Filgueira Lima (Lelé), Marcílio Mendes Ferreira, Hélio Uchôa, Nauro Esteves, Glauco Campello, Stellio Seagra, Jaci Ferreira Hargreaves, Tadudoo Takada, Eduardo Negri, Marcelo Campello, Sérgio Rocha, José Hipólito Camurça, Luigi Pratesi, Aldary Toledo, Paulo Magalhães, Celso Lelis e… Oscar Niemeyer.
Poetas da arquitetura moderna brasiliense.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.