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Em Brasília, o concreto armado perdeu a crueldade e virou poesia

Os brasileiros conseguiram dobrar o mais inflexível dos materiais de construção. Na capital do Brasil, ele se dobra, tremula e dança

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Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF
Imagem construcao de brasilia Mário Fontenelle
1 de 1 Imagem construcao de brasilia Mário Fontenelle - Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF

– Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. Foi necessário 1 milhão de metros cúbicos de concreto, e foram necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios.
– E 1 milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de madeira foram necessárias. E 60 mil operários! Foram necessários 60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar, cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas…
– Ah, as empenas brancas!
– Como penas brancas…
– Ah, as grandes estruturas!
– Tão leves, tão puras…
Como se tivessem sido depositadas de manso por mãos de anjo na terra vermelho-pungente do planalto, em meio à música inflexível, à música lancinante, à música matemática do trabalho humano em progressão …
O trabalho humano que anuncia que a sorte está lançada e a ação é irreversível.

***

A maravilha acima é um trecho da Sinfonia da Alvorada, obra composta por Tom e Vinicius para Brasília, uma cidade de ossos expostos. O concreto armado se basta, é soberano e implacável: despreza os adereços, como um folião nu.

Há uma beleza cruel em Brasília, crueldade que nasceu na revolução industrial, quando homens e mulheres começaram a ser substituídos pelas máquinas de moer gente.

Nada é mais impiedoso na construção civil que o concreto armado, nem os vidros nem as placas de titânio nem toda a tecnologia que se sucedeu consegue ser mais rígido, inflexível, irredutível, inclemente.

O concreto armado é a pedra que o homem inventou. Nenhum outro material de construção é mais resistente — por isso, é com ele que se erguem barragens, pontes, edifícios. O concreto armado são os ombros do mundo habitado.

Não se imagina a arquitetura moderna sem o concreto armado como não se imagina os carros sem a borracha de que são feitos os pneus. Como se os arquitetos tivessem abdicado da poesia em nome da objetividade fria e calculista.

(Lucio Costa fez arquitetura moderna poética: o Hotel Park São Clemente, em Nova Friburgo-RJ. Oscar Niemeyer também, com o Catetinho, o palácio de tábuas, mais modesto, porém fortemente simbólico para os brasilienses).

O bicho humano se acostuma com tudo. Tanto concreto tornou pétreo o olhar do brasiliense, a ponto de o Museu da República, o cuscuz de concreto armado, ter se transformado rapidamente numa das obras mais queridas da cidade.

Invenção poética

O concreto armado surgiu quase por acaso e de um modo quase poético. O engenheiro francês Joseph Lambot gostava de passear de barco com os filhos. Parece que a canoinha da família estava furada. Imerso em pesquisas sobre material de construção, resolveu fazer uma canoa com uma malha de ferros finos envolvidos em uma fina capa de argamassa.

O barquinho flutuou e Lambot cuidou de patentear a invenção. Era 1850, um século antes de, num país distante, um bando de malucos decidir construir uma cidade toda em concreto armado, 1.100 metros acima do nível do mar.

Estava inventada a poesia inflexível da arquitetura, parodiado Vinicius. Dói, mas é bonito. É indiferente à escala humana, mas é belo. O concreto armado não suporta fraqueza, falhas, frestas. É mais monolítico que o monolito de “2001, uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. É a frieza de Deus, é a arquitetura implacavelmente divinizada.

Niemeyer gostava de contar o instante em que Joaquim Cardozo lhe telefonou, do Rio para o canteiro de obras de Brasília: “Oscar, consegui a tangente que vai fazer a cúpula da Câmara solta como você queria”. O engenheiro/poeta estava eufórico. A cúpula convexa era um desafio bem maior do que a côncava, porque seria de boca aberta para fora, como uma xícara à espera do café.

Uma intrincada malha de vergalhões sustenta as duas cúpulas. Mas Joaquim Cardozo teve que ter a coragem de romper com as normas da construção civil até então estabelecidas para descobrir um novo cálculo de sustentação do concreto armado e deixar a xícara solta no ar, tocando levemente o chão.

Engenheiro e poeta

Joaquim Cardozo era, ao mesmo tempo, um engenheiro de cálculo e é um dos mais importantes poetas brasileiros modernos. Pedra e flor num mesmo humano. Fosse uma casa, JC seria a Casa da Cascata, que o arquiteto Frank Lloyd Wright construiu na Pensilvânia — de dentro do concreto armado sai um jorro d’água.

O que salvou Brasília foi o jeito brasileiro. Aqui, o concreto armado conseguiu fugir da cruel sisudez e ganhou a poesia malemolente da Catedral, da Igrejinha, do Alvorada, do Planalto, do STJ, do Itamaraty.

Na capital do Brasil, o concreto armado conseguiu flutuar. Virou poesia. Aqui, ele tremula, se dobra e dança. Observe as colunas do Alvorada em dia de muito sol. O Itamaraty em noite de luzes acesas. A Igrejinha quando amanhece.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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