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A história triste e feliz de pai e filho nas estradas da vida

O caminhoneiro- candango Milton Librelon penou bastante na construção de Brasília. O filho guarda há 60 anos uma carta do pai

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Arquivo Pessoal
A história triste e feliz de pai e filho nas estradas da vida
1 de 1 A história triste e feliz de pai e filho nas estradas da vida - Foto: Arquivo Pessoal

O caminhoneiro estava desolado, doente. “Aqui tem gente passando fome”. Era 6 de dezembro de 1959, a quatro meses da inauguração da nova capital do Brasil. Tudo aqui era muito caro. “A barba é 30,00 cruzeiros [a moeda em vigor] e cabelo 60,00, 1 copo de vitamina 15,00, 1 ovo custa 10,00 cruzeiros.”

Quase 60 anos depois, o preço de uma barba num salão popular de cidade satélite é R$ 25,00 e um ovo, R$ 0,50 (na cartela de R$ 6). Uma barba compra 50 ovos. Na Brasília daquele tempo, uma barba comprava três ovos – a comida era muito mais cara que o barbeiro que, pelo visto, também não era barato.

Toninho Cabrobó
Milton guardou duas folhas de papel tiradas de um caderno espiral pequeno

“Até agora não arranjei nada aqui, o que vou fazer é vender o carro aqui mesmo. Isso não passa de um grande vício, pois está na cara que isso não serve. Tenho passado fome, cansaço, trabalhando doente e não ganho dinheiro”.

O caminhoneiro Milton Librelon escrevia para a mulher, Wanita, a quem muito amava e com quem morreria tragicamente 45 anos depois. O vício a que se refere é o de ser caminhoneiro, ofício que transmitiu ao filho Milton nas viagens pelo lado de dentro do Brasil. Como a boleia ia ocupada com os ajudantes, o menino viajava atrás do banco do motorista, de pé, olhando a estrada pelo ombro do pai. Aos 16, o adolescente já dirigia (sem habilitação). “Na semana que fiz 18, tirei a carteira”, conta Milton Antônio Librelon.

Toninho Cabrobó
Assim como o pai, Toninho Cabrobó virou caminhoneiro

Esse menino é hoje um homem de 56 anos, 38 de profissão, que já percorreu mais de 5 milhões de quilômetros Brasil adentro – das capitais brasileiras, só não conhece Manaus e Macapá, às quais só chegaria de balsa.

Nesse tempo todo, Milton guardou duas folhas de papel tiradas de um caderno espiral pequeno. É a carta do pai, escrita à caneta-tinteiro e finalizada a lápis, porque a tinta havia acabado. “Tem até uns pingos de óleo do caminhão”.

Desiludido com Brasília, Milton pai voltou para Bocaiúva, cidade ao norte de Minas. O filho acredita que ele tenha contraído febre amarela no Planalto Central. Apesar das agruras, o breve candango guardou boas lembranças do tempo de Brasília. Contava ao filho que havia conhecido Juscelino (“ele andava nos canteiros de obra com um grande chapéu de palha”) e mantinha na prateleira da sala dois livros: Por que Construí Brasília e Meu Caminho para Brasília, memórias do fundador da nova capital.

Depois de 50 anos de estrada (“o currículo de acidente dele era zero”), o caminhoneiro morreu aos 70 anos num acidente de trânsito na cidade onde morava, Montes Claros (MG). O carro em que ele e a mulher estavam foi destruído por dois outros carros em um racha de dois jovens numa avenida da cidade.

Milton filho continuou pilotando caminhões. Ativista da categoria, participou da última greve e se diz desanimado: “Acho que o caminhoneiro autônomo não sobrevive a mais cinco anos”. Nas estradas, é conhecido como Toninho Cabrobó. Apaixonado pela profissão, fez fotos de boa parte dos lugares por onde passou, muitas delas nas divisas dos estados. Diz que não sabe o que será de sua vida quando não puder mais dirigir. É personagem de um documentário para uma tevê alemã: Os Cowboys do Asfalto do Brasil.

Boa parte das informações que Toninho me passou veio em áudios, imagens e mensagens transmitidas de dentro do caminhão Scania 420 R nas estradas do Brasil. Não ouvi o barulho do motor, era como se estivesse num road movie (“Bom dia, Conceição. Saí de casa ontem era dez da noite, já percorri 300 km, estou no trevo de Brasília, no entroncamento da BR 040 com a 365, que liga Montes Claros a Uberlândia. Não entro no sentido Brasília, passo direto no sentido Uberlândia”).

Conceição Freitas/Metrópoles
Este é endereço mais próximo de onde morou o caminhoneiro

O endereço de Milton Librelon, o pai, em 1959, era 2ª Avenida nº 1326, Brasília. Na então Cidade Livre. Esse endereço não existe mais no Núcleo Bandeirante. Existe o número 1325 (que indica o bloco, não a unidade) e é um estabelecimento comercial.

Confira a carta na íntegra:

Brasília, 6 de dezembro de 1959

Querida Wanita,

Queira aceitar o meu abraço

Wanita, eu estou muito bem aqui, mas de saúde, de dinheiro estou muito mal Veja bem, até agora não arranjei nada aqui, o que vou fazer é vender o carro aqui mesmo se Deus quiser, eu só não quero é meixer mais com este ramo, pois isso não passa de um grande vício que eu tenho. pois está na cara que isto não serve, tenho passado fome, cansaço, trabalhando doente e não ganho dinheiro.

Brasília só tem fama, pois aqui tem gente passando fome. Veja bem, a barba é 30,00 cruzeiros e cabelo 60,00, 1 copo de vitamina 15,00, 1 ovo custa 10,00 cruzeiro

Para lavar o terno de linho eles cobra 120,00 cruzeiros, para ganhar é muito custoso, é só vender o carro eu vou embora.

Sem mais queira aceitar um forte abraço, este que não te esquece um só minuto

peço abençoar os meus pais por mim

Mande notícia urgente para mim

O endereço é 2ª Av. nº 1326

Brasília Estado de Goiás

 

*Essa crônica é dedicada ao querido Gustavo Falleiros, que soube dessa história e me deu o contato do Toninho Cabrobó

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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