31/3/1964, Brasília sitiada: ninguém entra nem sai nem telefona
As saídas terrestres foram fechadas, o aeroporto, interditado, e as ligações telefônicas para Minas, São Paulo e Rio, interrompidas
atualizado
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Para este 31 de março de nada a comemorar e muito a lembrar, estudar e repudiar, percorri os jornais brasilienses dos dias que antecederam o golpe de 1964. Brasília ainda chorava o fim do governo Juscelino, padecia do abandono das obras da cidade e era rejeitada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo corpo diplomático, que se recusavam a deixar o Rio.
No dia 30, no Congresso, o deputado Hebert Levy (da UDN, o DEM de agora) acusava o presidente João Goulart de estar “de braços dados com a extrema esquerda, usando e adotando a sua tática de lutas de classe”. Os jornais noticiavam “um possível estado de prontidão” das Forças Armadas.
Anúncios publicados nos jornais pediam domésticas “com referência” e motoristas “com boa aparência”, eufemismo que revelava a crença de que toda mulher pobre podia ser uma ladra e o aviso de que negros não seriam aceitos. Naquele tempo, e até a Lei das Domésticas, a classe média podia ter duas empregadas: uma para lavar e passar, e outra para cozinhar e arrumar.
As declarações do então governador de São Paulo, Ademar de Barros, continham o prenúncio do golpe: “Não darei o primeiro tiro, mas se preciso morrerei em defesa da democracia brasileira, contra a ameaça comunista que tenta fechar as igrejas, destruir os nossos lares, escravizar nossos filhos e nosso povo”.
No Rio, Jango denunciava a ação dos mesmos grupos que provocaram o suicídio de Getúlio Vargas e que tentaram impedir a posse dos presidentes eleitos nos três pleitos anteriores (Vargas, Jânio e Juscelino). João Goulart preparava reformas de base (agrária, educacional, fiscal, urbana, eleitoral e bancária), todas elas apontando para a diminuição das desigualdades sociais.
Brasília se antecipava à reforma educacional com a posse, no dia 30 de março, de Pompeu de Sousa como superintendente de Educação e Cultura de Brasília. O inesquecível Pompeu começou seu discurso reverenciando Anísio Teixeira, que havia criado o sistema de educação de Brasília, “obra modelar”. Prometia fazer todo esforço para restaurar “a pureza” do projeto educacional de Anísio. Na plateia, o amigo Darcy Ribeiro, então chefe da Casa Civil do governo Jango.
A nova ideologia da Educação, disse Pompeu, naquele 30/3/64, “terá de assentar as suas raízes na realidade nacional, na conjuntura humana e econômica que atravessamos. Portanto, uma educação para as reformas (de base)”. Sempre otimista afetuoso, não dava sinais de que pressentisse um golpe. “Neste momento, nada que se faça no Brasil deve fugir a este imperativo fundamental: tornar a emancipação nacional uma realidade e a justiça social a base do convívio humano dos brasileiros.”
(Demitido da UnB em fins de 1964, voltaria a Brasília para ser secretário de Educação do governo José Aparecido de Oliveira e, logo depois, senador nas primeiras eleições da capital).
Naquela semana, o embaixador Wladimir Murtinho festejava a chegada da maquete do projeto do Itamaraty. Começariam as obras de um dos mais belos palácios de Niemeyer. Quem sabe assim os diplomatas se animariam a vir sangrar os narizes na seca do Cerrado?
No dia 31 de março, sentindo o cheiro do golpe, os brasilienses esvaziaram as prateleiras dos armazéns e dos únicos supermercados da cidade, os da SAB (Sociedade de Abastecimento de Brasília). E correram às agências bancárias.
As saídas terrestres foram fechadas, o aeroporto, interditado, e as ligações telefônicas para Minas, São Paulo e Rio, interrompidas. Os transmissores da sucursal do Estadão foram apreendidos, e as redações dos jornais, rádios e tevês começaram a receber, no mesmo dia, orientações sobre quais notícias poderiam ser divulgadas. Começava a censura, se anunciava o terror de Estado.
Ainda no dia 31, Darcy Ribeiro articulou, com sindicalistas, professores, estudantes, militantes de esquerda, uma resistência que pretendia ocupar o Congresso a partir do Teatro Nacional. Mas o motim durou pouco. Às 11 da noite do dia 1º de abril, uma sessão extraordinária do Congresso Nacional decidiu pela destituição de Jango. Oito dias depois, a Universidade de Brasília seria invadida pela primeira vez.
A matemática sinistra dos 20 anos de ditadura militar totaliza 224 mortos, 210 desaparecidos, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, e mais de 20 mil torturados. A conta não inclui presos que não sofreram tortura física, exilados, gente que entrou para a clandestinidade, políticos cassados, professores demitidos das universidades, funcionários públicos perseguidos, crianças órfãs de pais vivos. E um país inteiro que perdeu a liberdade de falar, ouvir, escrever, ler, cantar, tocar, conversar, se organizar, ir, vir, viver.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.