TJDFT homenageia o centenário de Lúcio Arantes, o 1° juiz de Brasília
Magistrado nomeado por decreto de Juscelino Kubitschek era conhecido pela ética. História dele se mistura com a do Distrito Federal
atualizado
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Quando Brasília ainda era formada por barro e esperança, um homem já atuava nos arredores da cidade que se tornaria capital da República. Em 1951, o goiano Lúcio Batista Arantes era juiz titular de Planaltina, então território de Goiás. Famoso por fazer a chamada “Justiça efetiva” – que ia até o povo –, realizava os casamentos da cidade, fazia conciliações e, quando não dava para trabalhar sob o teto da comarca, atendia em casa. As portas eram abertas à população.
O magistrado, que ficou conhecido pelo perfil apaziguador, completaria 100 anos em 2018. Para celebrar a memória do jurista, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) fez, na tarde de segunda-feira (5/11), uma sessão especial para homenageá-lo.
Trata-se do primeiro agraciamento oferecido ao centenário de um desembargador do tribunal. Até então, não havia previsão no regimento do TJDFT para cerimônia dessa natureza. Lúcio Arantes foi lembrado por ter sido um juiz imparcial, um homem de hábitos simples e que cultivava as amizades.
O evento reuniu uma série de depoimentos a respeito da trajetória do magistrado. Como as histórias sobre os matrimônios em Planaltina: ele fez tantos casamentos – chegou a celebrar 50 por dia – que ficou conhecido como Juiz Santo Antônio, em referência ao religioso casamenteiro.
Outro episódio remete a um dia em que o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, queria solucionar o caso de um trabalhador que matou outro. JK perguntou qual juiz poderia ajudar, e o nome de Arantes foi o primeiro a ser mencionado.
Em uma kombi da Terracap, ele foi até o local do litígio e fez a audiência de dentro do veículo. Lá, conheceu JK. A partir dali, começou a amizade dos dois. Quando Brasília foi inaugurada, em 1960, o presidente e fundador da nova capital nomeou Arantes o primeiro magistrado de Brasília. O “Pioneiro da Justiça”, como era chamado, começou então a fazer história no Distrito Federal.
O magistrado foi responsável pelas primeiras eleições no DF; presidiu o primeiro júri de Brasília e comandou o TJDFT no biênio 1976-1978. Atuou em casos emblemáticos, como o assassinato de Ana Lídia e a morte do jornalista Mário Eugênio, executado com sete tiros na cabeça.
Homenagem
A história de Arantes, que se mistura com a do Distrito Federal, foi lembrada e honrada na sessão de segunda (5). A data marcou também o aniversário de Ruy Barbosa, patrono do direito no Brasil, que, se estivesse vivo, completaria 169 anos e empresta o nome ao Palácio da Justiça do DF.
No evento, familiares, amigos e colegas de profissão relataram as contribuições do magistrado à Justiça. O presidente do TJDFT, desembargador Romão Cícero, abriu a cerimônia.
“Em 1956, quando as autoridades aqui chegaram com a intenção de criar a capital, sob o comando de Juscelino Kubitschek, nesse espaço de 5 mil quilômetros quadrados encontraram Lúcio Batista Arantes andando em sua Ford Rural”, relembrou o presidente do tribunal.
De acordo com Romão Cícero, a ideia inicial era fazer o evento em 3 de setembro, data do aniversário de Arantes, mas, por uma questão de regimento, não foi possível. “Decidimos, então, fazer essa sessão especial destinada a prestar uma homenagem ao homem ‘número um’ do DF em 5 de novembro, que é o aniversário de outro grande brasileiro”, ressaltou.
O escolhido para o discurso de honra ao juiz foi o desembargador José Jacinto Costa Carvalho, conterrâneo do homenageado. J. J. Costa Carvalho é de Santa Helena de Goiás e Lúcio Arantes nasceu em Trindade (GO).
Por cerca de 30 minutos, o magistrado falou sobre a trajetória do colega e concluiu: “Ele era incapaz de ignorar as angústias que afligiam a população. Recebia as pessoas em sua casa, despachava processos embaixo de tendas. Trabalhou com mãos seguras e limpas, conquistando a confiança e o respeito”.
Família
Durante a sessão, o procurador-geral de Justiça do DF, Leonardo Bessa, contou a história de quando Lúcio Arantes conheceu Juscelino Kubitschek e falou sobre a proximidade com a família Arantes. “Ele contribuiu para a cidade, assim como meu pai, Iran Bessa, que foi médico da família”, disse.
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional DF (OAB-DF), Juliano Costa Couto também elogiou a trajetória e a representatividade de Arantes na história. “Foi ele quem resolveu os primeiros conflitos de terra do DF e as questões de violência, funções que desempenhou com muita sabedoria. Além de talentoso, Lúcio Arantes é admirável pelo amparo irrestrito à família e amor à judicatura”, frisou.
O desembargador Roberval Belinati enfatizou a importância de prestigiar a história do Judiciário da capital. “Para o DF, o desembargador Lúcio Arantes representa nosso primeiro juiz. Ele ia pessoalmente fazer vistorias, visitava pessoas com problemas, resolvia os conflitos de interesse pessoalmente. Deixou um belíssimo exemplo para nós”, ressaltou.
Vida pessoal
O desembargador Lúcio Arantes era casado com Albertina Cunha e Cruz Arantes, conhecida como Bety Arantes, e teve quatro filhos: José Luciano e Túlio, ambos procuradores do DF; Lúcia Beatriz, assessora de Cerimonial do TRE-DF; e o advogado Leonardo Otoni.
Dona Bety foi lembrada na homenagem como peça fundamental para que o marido chegasse aonde chegou. Escritora e professora de francês, ela fazia pães de queijo para levar aos amigos da família, desembargadores, juízes, médicos e ao presidente JK.
A matriarca escreveu poemas, um deles dedicado ao marido, por ocasião de sua morte, “uma das mais belas poesias que ela já fez”, segundo o filho José Luciano. Nela, a poetiza ressalta que o esposo deixou, por onde passou, o perfume de paz e a luz de esperança.
“Meu marido era um homem bom. Sempre usou a lealdade, a simplicidade e seu grande amor pela justiça. Lúcio, a ferida do meu peito não cicatrizou. A noite vejo-o perto de mim. O tempo vai passando, mas a saudade invade a minha vida. Mas erguendo os olhos para Jesus, não o vendo, penso logo: ‘você, Lúcio, não morreu. Só morre mesmo aquele que não deixa saudades'”, diz um trecho da poesia.
O primogênito, José Luciano Arantes, 61 anos, ressaltou que a humildade do progenitor o projetou. “Ele agregava, gostava de conciliar as pessoas, recebia as pessoas em casa. Tive a oportunidade de conhecer meu pai como filho e como assessor, trabalhei com ele. Como profissional e em casa, era a mesma pessoa.”
De acordo com o procurador, a história de Brasília não pode ser dissociada da de Lúcio Arantes. “Como único juiz de Brasília, recebia os chefes de Estado ao lado de JK. Tenho a maior honra disso. Honra por ele ter sido o primeiro juiz, de ter ido para a guerra, em 1942. A vida dele foi muito bonita, muito associada com o nascimento da cidade, ao sonho de Dom Bosco”, disse.
O caçula, Túlio Arantes, lembrou que o pai era o único magistrado de todas as áreas do DF naquela época – criminal, cível e família –, além de ter presidido o primeiro júri de Brasília. “Ele era um homem bom de coração. O Judiciário reconhece a importância desse pioneiro para a história da cidade”, afirmou.
O título era, inclusive, um dos orgulhos de sua trajetória. “Entre os vários títulos e condecorações que recebeu, o que mais o orgulhou foi o de pioneiro, e ele falava isso abertamente”, lembrou Túlio.
Os três filhos fizeram direito e seguiram carreira na área. A filha Lúcia Beatriz Arantes se formou em jornalismo, mas não deixou o Judiciário: é assessora do cerimonial do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-DF). “Por causa da homenagem, nós revisamos a vida dele toda, com fotos, cartas e documentos. Foi muito bom, ficamos muito emocionados”, contou.
Livros
Já no final da vida, quando foi acometido por uma doença degenerativa, que atacou o sistema nervoso periférico e fez o magistrado precisar de cadeira de rodas para se locomover, Lúcio Arantes escreveu dois livros: um sobre a terra dele, chamado Beco dos Aflitos; outro, a respeito do DF: Do Barro Preto ao Planalto.
O desembargador morreu em 11 de fevereiro de 2009, aos 90 anos. “Ele deixou uma semente, um exemplo. Como ele diria, ‘só morre mesmo aquele que não deixa saudades'”, concluiu o primogênito do desembargador.