Dona Dica: uma história de fé e devoção no interior de Goiás
A tradicional Festa do Divino Pai Eterno relembra a história de Benedita Cipriano Gomes, conhecida por curar por meio de orações
atualizado
Compartilhar notícia
É tradição. Em julho, milhares de fiéis se reúnem no povoado de Lagolândia, distrito de Pirenópolis, para comemorar a Festa do Divino Pai Eterno, popular no estado de Goiás. Para parte dos moradores, o evento tem um significado a mais: representa a memória de Benedita Cipriano Gomes, conhecida nas redondezas como Dona Dica ou Madrinha, por aqueles que tomavam a benção dela.
Dica foi uma mulher simples do início do século 20, mas à frente de seu tempo por representar papel messiânico e, em seguida, político. Desde o nascimento, em 1905, sua história é rodeada de fenômenos vistos como sobrenaturais – foi considerada morta por quatro vezes. O que a medicina atual explica como crises de catalepsia, o povo entendeu como ressurreição.
Segundo conta Waldetes Aparecida Rezende no livro Santa Dica – História e Encantamento –, o pai de Benedita, Benedito Cipriano Gomes, teria sonhado com um anjo. Esse lhe contou que a filha receberia uma missão especial e Benedito deveria oferecer forças para ajudá-la a cumprir.
Benedita ganhou esse apelido por, frequentemente, ser vista conversando com seres invisíveis, afirmando serem anjos celestes transmitindo conselhos. Waldetes Aparecida conta que até os 20 anos, em 1925, mesmo sem estudo, Dica falava em outras línguas e curava as pessoas levando as mãos à cabeça ou aos ferimentos dos enfermos.
“Sem utilizar raiz ou ervas, curou vários tipos de enfermidades”, escreveu. O fato fez dela um símbolo de devoção por alguns e de estranheza pelos mais temerosos.
Rapidamente a história se espalhou por cidades próximas e outros estados, o que causou uma verdadeira romaria à Lagolândia. Em 1923, começaram a ocorrer reuniões de cura duas vezes por semana, conhecidas como Conselhos, com a manifestação de guias espirituais.
“Dica ficava como morta, a voz saía de seu corpo, mas sua boca não se mexia, mudava de cor constantemente, conforme os guias se manifestavam”, conta um trecho do livro.
Essas manifestações fizeram com que ela não fosse bem-vista por algumas pessoas das redondezas – muitos a consideravam bruxa. Até hoje, no entanto, ela tem um grande número de devotos que rezam para serem curados.
Festa do Divino Pai Eterno
A Festa do Divino Pai Eterno, como é conhecida hoje em Lagolândia, é herança de Dica. Ela frequentava as celebrações religiosas dos povoados de Trindade e Pirenópolis, até ser expulsa por moradores das redondezas.
Anos depois, volta a Lagolândia levando as duas tradições: a festa do Divino de Trindade e a comemoração em homenagem à Nossa Senhora do Rosário, padroeira de Pirenópolis.
O evento é popularmente conhecido como a Festa do Doce de Lagolândia, devido aos esforços dos moradores locais e de cidades próximas em produzir uma grande quantidade de guloseimas. De acordo com a tradição, elas são feitas para lembrar as pessoas de que na terra o povo terá amarguras, mas no céu, o que nos espera é doce, como diz a Bíblia.
Segundo o costume, os doces não podem ser comprados nem vendidos depois de prontos. Em 2018, foram produzidos 5 mil potes de 11 sabores diferentes – leite, goiaba, figo, laranja, mamão, queijadinha, batata, banana e outros – feitos com, ao menos, três toneladas de açúcar. Os moradores de Lagolândia começaram a elaboração em 23 de junho.
Os dias que antecedem a festa são marcados por muita emoção. A palavra generosidade ecoa nas redondezas. A população de Lagolândia e povoados próximos se unem para garantir a realização da festa, sempre com muita oração.
Ela (dona Dica) fundou essa festa e ensinou ao povo a prosperar pela doação. Quando eu consigo pensar no outro é que Deus me enxerga
Janaína Barbosa, uma das fiéis
Quem pode, doa dinheiro, outros dão alimentos para os trabalhadores. Muitos oferecem ajuda para descascar frutas, cozinhar, lavar as louças com uma barra de sabão e, principalmente, conduzir orações.
Fé e cura
Todos os envolvidos têm ao menos uma história de fé para contar. Maria Helena Linhares e o filho Jhovaney Linhares foram os responsáveis por gerenciar a produção de doces na antiga casa de Dica.
Maria Helena enfrentou o câncer de mama em 2012 e um divórcio logo em seguida. “Foram dois cânceres, mas o maior desafio foi a separação, depois de 30 anos, na minha pior hora. Eu tinha paixão louca por ele. Tinha medo de partir e deixá-lo”, lembrou emocionada Maria Helena.
Os dois se dedicaram para que a festa saísse como o planejado. Passaram pouco mais de um mês na casa de Dona Dica produzindo os doces.
Hoje, me dedico a essa casa, a rezar pelas pessoas. A oração cura
Maria Helena Linhares
Divina Soares da Silva se considera assessora de dona Dica. “Eu cuido dessa casa há 30 anos. Ela me pediu para dar continuidade ao trabalho. Não fui eu que escolhi, mas por obediência a ela e a Deus, eu aceitei”. Mas não foi sempre assim.
“No começo eu sentia muito. Eu deixei a minha família para trás; passei dois meses entre a vida e a morte no hospital. Hoje, estou mais experiente”. Assim que aceitou a missão, ela conta, teve a saúde restabelecida.
Divina diz não ser fácil ocupar esta função, sofrendo constantemente com a discriminação, assim como a Dona Dica no século passado. “As pessoas não entendem, nos humilham. Elas confundem as nossas crenças e acham que a casa da madrinha é um centro espírito, e não é!”.
Ela explica que os frequentadores da casa são, em maioria, católicos e fazem orações para a Nossa Senhora do Rosário e para a madrinha. “Durante toda vida esse lar foi um lugar acolhedor. Pode ser rico ou pobre, ninguém tem status aqui”, completa Divina.
O Metrópoles esteve no povoado por dois finais de semana para acompanhar os preparativos da festa de perto. Contamos com o apoio da professora e moradora de Pirenópolis, Tatiane di Passos, responsável por nos apresentar a história de Dona Dica.