O nazista de Unaí, os dois não nazistas e os mortos-vivos
O mal absoluto está muito próximo do maior sítio da utopia moderna. Está em Luziânia e Pirenópolis. E está testando os nossos limites
atualizado
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Quem já viveu uma tragédia ou recebeu uma notícia terrível sabe que nós, humanos, temos um suporte de defesa que não deixa enlouquecer diante do insuportável. É preciso algum tempo pra que a gente dê conta de aceitar o que aconteceu. Por isso, dizemos que a ficha ainda não caiu.
Estamos, os humanos com alguma sanidade e decência, em um estado de paralisia contínuo dada a sucessão de acontecimentos estarrecedores desde as últimas eleições. É uma hipótese, na falta de outra melhor.
Aí aparece um vídeo e uma foto com um homem usando uma braçadeira com a suástica num bar de Unaí (MG). Veste camisa de mangas compridas e tem o cabelo partido de lado e cuidadosamente penteado para a direita, ocupando a borda da testa – à moda Hitler, escrevo, embora me dê arrepio.
Havia um nazista no bar, havia também alguns outros poucos clientes, mortos-vivos como nós, os que continuamos a nos indignar escrevendo, postando, nos arrepiando — e só.
Havia, porém, pelo menos dois humanos decentes e minimamente corajosos naquele bar (o termômetro da coragem tem descido a níveis vergonhosos). Um deles ou uma delas, à direita do nazista, fez um vídeo de cinco minutos, a quatro mesas de distância. O outro, mais próximo, fotografou o homem a meio-corpo, com a suástica. Houve quem postasse a foto nas redes com o cuidado de proteger o rosto do sujeito – talvez por medo de ser processado por acusar um nazista de ser nazista e de estar praticando um crime (“Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”).
Há um sutil sorriso sarcástico no rosto do nazista. Como se estivesse testando até onde pode ir na sua horrenda provocação. Os demais clientes, homens e mulheres entre 20 e 40 anos no máximo, parecem indiferentes ao que acontece. Dois policiais militares, com a viatura estacionada ao lado, conversam com um homem de roupa preta que parece ser o responsável pelo estabelecimento naquela noite. Os PMs vão embora. O garçom, ou gerente, vai conversar com o nazista, chega a tocar no ombro do criminoso.
Parece lhe dizer qualquer coisa parecida como me desculpe, cavalheiro, mas o senhor está fazendo propaganda de um regime que matou 6 milhões de pessoas, dentre elas 1 milhão de crianças, depois de tê-las submetido a longos períodos de trabalhos forçados, fome, experiências genéticas e perversidades várias, apenas e tão somente porque elas existiam.
O neonazista de Unaí pretende o genocídio de quem? Dos pretos, dos pobres, dos ativistas de esquerda, da população LGBT, das feministas, dos migrantes, dos deficientes, de todos aqueles
que não se encaixam no seu desejo delirante de pureza étnica e moral, tudo alimentado num poço sem fundo de ódio – ódio que, segundo a pesquisadora Adriana Dias, antropóloga da Unicamp, lhes traz conforto.
Unaí é quase região metropolitana de Brasília. Está a cerca de 160 km da capital. Mas o neonazismo está muito mais perto dos brasilienses do que gostaríamos de acreditar. Adriana Dinis localizou, dentre as 334 células neonazistas, três grupos em Goiás — em Goiânia, Pirenópolis e Luziânia. Ou seja, a 50 km do coração da utopia moderna, o mal absoluto põe a cabeça de fora. Se houver chance, a serpente sai das trevas. Por enquanto, dois clientes do bar de Unaí souberam reagir, dentro do ambiente virtual. Já é alguma coisa. O homem foi identificado. É um pecuarista da cidade: José Eugênio Adjuto, conhecido como Zecão Adjuto, de 57 anos.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.