Brasília, a cidade onde os mortos vão embora. Só alguns ficam…
Estamos rodeados de mármores, de granitos, folhas secas e certo solene abandono. Até abandonados os cemitérios são solenes
atualizado
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O homem de cabelos brancos está sozinho numa vasta extensão do cemitério. Varre as folhas secas dos túmulos e dos caminhos estreitos que dão acesso a cada uma das moradas dos mortos. Só se ouve o arranhar da piaçava na terra e o barulho crocante das folhas. O varredor improvável tem 93 anos, chegou a Brasília em 1959 e, portanto, tem direito a ser sepultado nas redondezas. O Campo da Esperança destina uma ala aos que vieram para a nova capital até 31 de dezembro de 1965.
Chama-se João Batelli, é paulista de Araraquara e foi bancário nos primeiros tempos de Brasília. O dia dos mortos se aproxima, mas a varredura é uma tarefa que ele cumpre uma vez por mês. Cuida de manter limpas as redondezas e o túmulo de sua mulher, morta há seis anos. Não se preocupa com a própria morte – “quanto mais eu puder prorrogar, prefiro”, diz, rindo
de si mesmo.
Batelli não faz questão de morrer, mas caso venha a acontecer, gostaria de ser sepultado ao lado da esposa, na Ala dos Pioneiros. Não quer ser incinerado, como é o desejo dos demais irmãos. “Não é certo. Não estarei aqui pra decidir”, brinca novamente.
Estamos rodeados de mortos, de mármores, de granitos, folhas secas, mangas maduras e certo solene abandono. Até abandonados, os cemitérios são solenes. Batela conta que tem três filhos, dez netos, duas gatas, um cachorro e uma ponte de safena. Duas das netas decidiram deixar de morar com os pais para viver com o avô numa casa na 713 Sul.
Na casa dos mortos, se vê a vida ao longe…
A uns 100 metros de Batelli e do ressoar da vassoura arrastando folhas, estende-se um piso de mármore de uns 60m² e no centro dele, um obelisco. Durante mais de dez anos foi o túmulo do fundador de Brasília até ser transportado para o Memorial JK. Hoje, estão no local os corpos de dona Sarah e Márcia Kubitschek. Na quinta-feira passada, um grupo de trabalhadores da Novacap capinava, varria, lavava a Praça dos Pioneiros para a visitação do próximo sábado.
Sem perceber, me vi procurando os túmulos de Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Israel Pinheiro e de outros pioneiros seminais, ilustres ou anônimos. Nenhum dos acima citados foi sepultado em Brasília. Dos heróis nomeados, apenas Bernardo Sayão e Joffre Mozart Parada, foram enterrados no Campo da Esperança, foram vizinhos na Cidade Livre, são vizinhos de morte – um túmulo ao lado do outro.
Os dois primeiros engenheiros a virem para o cerrado, Sayão e Joffre eram amigos muito próximos. Paira sobre eles uma bruma de admiração por qualidades hoje raras: dedicação absoluta a um projeto coletivo, para além de qualquer interesse ou veleidade pessoal. E certo desdém pelas homenagens, reconhecimentos, entrevistas, fama.
Depois do túmulo (vazio) de Juscelino, o segundo mausoléu mais imponente, embora moderno como a cidade, é o de Joaquim Roriz, governador do Distrito Federal por quatro mandatos. Uma lâmina de mármore de uns 30m² cobre a morada do político mais popular de Brasília, depois de JK, claro.
Há um túmulo sem nome bem perto dos de Sayão e Joffre, mais próximo do de Juscelino. Parece ter sido pintado recentemente. A cruz branca é de cimento. Nenhuma identificação, nenhuma data, nenhuma foto. É o túmulo do candango desconhecido – em homenagem a todos os que morreram na construção da cidade e cujos corpos ninguém veio reclamar e nem mesmo foram identificados. Não há ossos. Só a sepultura.
Ao redor, túmulos abandonados, cobertos de matos, saqueados (muitos sem os crucifixos) rodeiam a pracinha cuidada para o dia dos mortos.
Já passa do meio-dia e João Batela continua rastelando folhas. Às vezes para, senta num túmulo, descansa e volta a cuidar dos mortos a ele desconhecidos. Talvez seja um jeito de aceitar que um dia acaba.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.