Xampu, miojo e frango: pequenos furtos levam pobres à prisão e mobilizam até o STF
Caso de mulher que furtou R$ 21 em comida não é exceção; furtos famélicos ou de valores pequenos são rotina na Justiça brasileira
atualizado
Compartilhar notícia
São Paulo – Enquanto mais de 20 milhões de brasileiros passam fome, uma mãe de cinco filhos foi presa por furtar R$ 21 em alimentos em um supermercado de São Paulo. O episódio causou comoção nas redes sociais, e posteriormente Rosângela de Almeida foi solta por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Mas sua história está longe de ser exceção.
Furtos por fome ou de pequenos valores movimentam o Judiciário todos os dias, chegam até suas mais altas instâncias, e muitas vezes o custo processual é maior do que o prejuízo dos itens roubados. Rosângela foi parar na cadeia por furtar dois miojos, uma garrafa de refrigerante e suco em pó no valor de R$ 21.
Em fevereiro de 2020, R. foi preso por roubar dois xampus, que custavam R$ 10 cada, em Barra Bonita, interior de São Paulo. Por subtrair dois steaks de frango, de R$ 2 cada, C.F.H. foi preso em Araxá, Minas Gerais.
Por tentar pegar sem pagar duas peças de lombo suíno, de R$ 65, R.L. foi preso em um supermercado da capital paulista, em 2018. Por furtar um creme de pentear de R$ 7 na zona leste da capital, A.F. foi preso em 2019. Em 2014, W.O. foi preso por tentar roubar um pacote de fraldas de R$ 17.
Há uma lista infindável de processos semelhantes em todos os tribunais do país. Uma busca rápida nas cortes estaduais, que são responsáveis por julgar esses crimes, mostra pessoas acusadas, denunciadas e condenadas por furtos de baixo valor, geralmente em supermercados e farmácias, de itens de alimentação ou higiene pessoal.
O perfil comum é de pessoas de baixa renda que alegam que estavam com fome, em situação de rua, desempregadas, em situação de dependência química, que precisam alimentar a si mesmo ou a família, que necessitam de itens de higiene ou que compram itens de fácil revenda – seja para trocar por alimentos, drogas ou outros produtos.
Num cenário de superlotação de presídios e de aumento de processos judiciais ano a ano, o princípio da insignificância (quando o item roubado é de um valor muito baixo) e o furto famélico (quando o furto tem objetivo de saciar a fome de que rouba ou de pessoas próximas), teses de advogados e defensores que buscam absolver seus representados por estes pequenos delitos, têm prosperado nos tribunais superiores.
Entretanto, juízes e desembargadores ainda são resistentes em dar decisões mais benéficas aos réus nas instâncias inferiores. A razão principal dos magistrados é a reincidência. No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), é pacífico: se a pessoa já foi presa anteriormente por furto, dificilmente será solta ou absolvida por um novo furto, ainda que o item roubado seja de um valor irrisório. Nos tribunais superiores, há tanto decisões favoráveis quanto desfavoráveis a pessoas reincidentes por furtos.
O problema, apontam advogados, é que a pessoa que faz pequenos furtos por necessidade geralmente vai repetir os delitos, pois sua situação não muda quando ela deixa o presídio. Se ela está constantemente em situação de fome ou de desemprego, ou se vive nas ruas e tem dependência química, vai furtar quando sentir necessidade novamente.
O defensor público Diego Rezende Polachini, que defendeu Rosângela Cibele de Almeida, a mãe que foi presa por furtar miojo, refrigerante e suco em pó no fim de setembro, conta que esse tipo de caso é rotineiro em São Paulo. “É difícil um dia que a gente passe sem um furto de supermercado, farmácia, e tem milhões de exemplos que a gente consegue mostrar”, diz.
Ele afirma que no TJSP, se a pessoa não tiver antecedentes criminais, costuma ficar em liberdade, mas se for reincidente, geralmente vai presa, “mas os outros tribunais superiores conseguem ver com muito mais humanidade do que o TJSP”. Foi o caso de Rosângela, que já respondeu por furto de fio de cobre e por furto de itens de supermercado (desodorantes e alimentos).
Na opinião de Polachini, usar a reincidência como fator decisivo desconsidera os motivos que levaram a pessoa a cometer o crime. “Se a pessoa está numa situação de vulnerabilidade, ela vai sair da cadeia, a situação dela dificilmente melhora. A fome continua, então essas pessoas são presas novamente”, falou.
Comida para os filhos com fome
Em 2 de fevereiro deste ano, L.S.M. entrou em um supermercado de João Pessoa e passou algumas compras no caixa. Outras, porém, ele escondeu e saiu sem pagar. Funcionários do supermercado viram o homem furtando os alimentos, a polícia foi chamada e ele foi preso.
Um pai desempregado “e desesperado por ver seus filhos pequenos com fome”, L.S.M. não tinha antecedentes criminais. Ele tentou furtar R$ 75 em produtos de alimentação e higiene pessoal. Um absorvente, uma bandeja de carne, uma peça de carne de sol, 140g de queijo, uma bandeja de carne moída, um peito de frango, uma garrafa de óleo de soja e uma lata de cereal infantil (Mucilon), avaliados em R$ 75.
L.S.M. foi solto provisoriamente cinco dias depois, mas o processo prosseguiu. Ele não chegou a ser condenado. A defesa impetrou um habeas corpus no Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB) para trancar o processo, mas o pedido foi negado. Uma nova tentativa foi feita no STJ, mas em março, o ministro Ribeiro Dantas também negou o pedido de trancamento.
A defesa então recorreu ao STF. Em 30 de março, o ministro Luís Roberto Barroso concedeu a ordem. O ministro lembrou, na decisão, que o Supremo tem entendimento consolidado pela extinção da ação penal quando houver mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica.
“Os autos dão conta de que o paciente furtou os objetos motivado pelo desespero de estar desempregado e ver seus filhos pequenos com fome em casa. Embora tenha havido a inversão da posse, todos os objetos foram imediatamente restituídos ao proprietário do estabelecimento comercial, de modo que a vítima não experimentou nenhum tipo de desfalque patrimonial”, escreveu o ministro na decisão.
Dois filés de frango
C.F.H. estava desempregado e morava de favor quando, em 17 de abril de 2017, entrou em um supermercado na cidade de Araxá, em Minas Gerais, e pegou dois pedaços de filés de frango empanados (“steaks”). Cada um custava R$ 2. A ação foi flagrada por um segurança do estabelecimento, o homem devolveu o alimento e foi preso. Na delegacia, ele confessou o delito – e disse que roubou porque estava com fome.
Ele logo foi solto, e seguiu respondendo ao processo em liberdade. Em agosto daquele mês, o Ministério Público de Minas Gerais apresentou denúncia, que foi aceita pela Justiça. C.F.H tornou-se réu.
A Defensoria Pública de Minas Gerais (DPE-MG) tentou trancar a ação penal contra o homem diversas vezes por meio de habeas corpus, mas não conseguiu. Os juízes e desembargadores negaram seus pedidos. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, somente em julho de 2021 foi julgado, com resultado favorável ao réu: a ação penal foi extinta.
No julgamento, os ministros do STJ fizeram duras críticas aos agentes da Justiça que deixaram um processo envolvendo um furto de valor tão baixo chegar até às mais altas instâncias do Judiciário. Dois steaks de frango, R$ 4, o homem não tinha antecedentes de furto ou roubo.
“Resta a percepção de que o Ministério Público do Estado de Minas Gerais e o seu Judiciário se houveram com excessivo rigor e se afastaram da jurisprudência remansosa nos Tribunais Superiores para levar adiante um processo criminal de tão notória inexpressividade jurídico-penal”, disse o relator, o ministro Rogerio Schietti, em seu voto, acompanhado por unanimidade.
Quatro chocolates
Em 2019, A.E.S. entrou em uma unidade das Lojas Americanas no Rio de Janeiro e furtou quatro barras de chocolate, que totalizavam R$ 21. Foi condenado inicialmente a três anos de prisão em regime fechado, mas posteriormente o TJRJ diminuiu a pena para dois anos, em regime aberto.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro tentou, em primeira e segunda instância, o trancamento da ação e a absolvição do homem, que tinha mais de 60 anos, pelo princípio da insignificância. Mas não conseguiu.
O caso teve de subir ao STJ. Em maio do ano passado, a ministra Laurita Vaz concedeu ordem de habeas corpus para absolver o homem. A ministra considerou, em sua decisão, o valor baixo dos chocolates furtados, e disse que “o grau de reprovabilidade da conduta é mínimo” e que “não houve dano social relevante”.
Dois xampus
O caso de Robson Drago chegou não só ao STJ, mas também ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em 1º de fevereiro de 2020, ele foi preso por roubar dois xampus da marca Head and Shoulders, que custavam R$ 10 cada. As câmeras de vigilância registraram a ação, e ele foi preso assim que passou pela porta do supermercado. Imediatamente, os itens foram devolvidos.
Mas ele foi levado para a delegacia, confessou, e ficou preso por cinco meses. Seus advogados acionaram a Justiça por meio de habeas corpus sucessivos para tentar soltá-lo, mas nenhuma decisão foi favorável. A justificativa principal foi que Robson é reincidente, já respondeu a outras ações penais por furtos de pequenos valores, também em supermercados.
Ele só foi solto por ordem do então presidente do STF, Dias Toffoli, em julho de 2020. O ministro levou em consideração o baixo valor dos xampus e entendeu que, ainda que ele fosse reincidente, havia outras medidas que poderiam ser aplicadas ao homem que não a prisão, especialmente durante a pandemia da Covid-19.
Assim que saiu da prisão, Robson foi trabalhar em uma feira livre de Barra Bonita, e atualmente está trabalhando com reciclagem. Casado e com 31 anos, ele é dependente químico e tem um histórico de internações para reabilitação.
Ele ainda aguarda o fim do processo – não com muita tranquilidade: ele foi condenado a 3 anos e 6 meses de prisão pelo roubo dos xampus, e a condenação foi confirmada em 2ª instância pelo TJSP. Caso sua defesa não consiga reverter a condenação nas instâncias superiores, poderá voltar a ser preso pelo roubo dos xampus em alguns anos.
Lucas Marques, um dos advogados que defende Robson, lamenta a pena alta que a Justiça determinou. “É uma decisão que reflete muito como muitos juízes e desembargadores decidem nestes casos, que argumentam que aplicar o princípio da insignificância vai ser um incentivo para que outras pessoas furtem”, diz.
*Os nomes foram omitidos para não expor os acusados, a pedido da Defensoria Pública
Furto por fome ou pequeno valor
Nem o furto famélico nem o princípio da insignificância estão previstos no Código Penal brasileiro, mas são doutrinas amplamente estudadas e aplicadas no direito brasileiro. No caso do furto por fome, a base legal é o artigo 24 do código, que prevê:
“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
Helena Regina Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, explica que este “estado de necessidade” é o que pode ser usado para afastar a característica criminosa da conduta, pois uma pessoa que está com fome e não consegue pagar para comprar um alimento, às vezes, não tem outra alternativa a não ser o furto. Só pode ser aplicado para furto de alimentos.
“É quando a pessoa está na situação de perigo para integridade física e para a saúde, e a pessoa não consegue evitar de outro modo. Então não é uma pessoa que tem dinheiro e escolhe furtar, ela não tem outra alternativa. Quando a gente coloca as coisas na balança, a integridade física ou saúde é mais relevante que o patrimônio à vítima do furto”, explica.
Ela diz que essa alegação sempre foi bastante admitida, mas que tem sido restrita pela Justiça quando a pessoa que pratica é reincidente, ou não é primária. Mas ela não concorda com essa restrição.
“É um estado muito semelhante à legítima defesa. Por exemplo, se a pessoa tiver 80 condenações na ficha, mas ela é ameaçada por alguém, e para se defender mata esse alguém, eu posso aplicar a legítima defesa tranquilamente, é o mesmo raciocínio que a gente deveria seguir com o estado de necessidade”, opina.
Já o princípio da insignificância, que também não está previsto em lei, é admitido de forma bastante tradicional na doutrina e na jurisprudência brasileira. Essa linha de defesa é usada para extinguir ações penais ou absolver pessoas quando o furto em questão é de um valor irrisório.
Não há uma regra sobre qual valor pode ser considerado insignificante. Entretanto, há diversas decisões do STJ fixando o valor de 10% do salário mínimo vigente à época do delito como teto para que seja considerado de valor irrisório e, com isso, haja absolvição ou trancamento da ação penal. Esse teto é utilizado em muitas decisões do TJSP, mas há casos em que valores maiores são admitidos, a depender do que foi roubado e as razões que levaram a pessoa a furtar.
A professora da USP ainda discorda da visão de que não prender pessoas que cometem esses pequenos furtos estimularia esses delitos. “Não é isso que impede uma pessoa ou estimula uma pessoa a praticar crimes. As raízes comportamentais para práticas de crime são muito mais profundas”, diz.