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Porto Alegre – As impressionantes enchentes que estão destruindo cidades gaúchas, desabrigando milhares de famílias e tornando quase impossível a circulação pelo estado vem sendo cotidianamente enfrentadas por heróis anônimos que deixaram suas vidas “normais” de lado para ajudar o próximo.
Com diversos pontos de isolamento, os voluntários têm operado por água, terra e ar um ecossistema de solidariedade. Por conta própria ou junto aos órgãos públicos, eles fazem a ajuda chegar onde não há mais estradas e nem o sinal de telefone existe. Inspirados na força das águas, que dribla qualquer obstáculo, centenas de pessoas de dentro e fora do estado batalham, incansáveis, há quase duas semanas, para chegar a quem precisa de ajuda para continuar vivendo.
O frio chegou forte nos últimos dias e começou a castigar o ânimo de quem está cara a cara com os efeitos da enchente: primeiros sintomas das doenças, resfriados, cansaço, gastos excessivos. Após muitos dias no front, abrigos e organizações começam a registrar baixas na participação dos voluntários. Alguns têm de voltar ao trabalho, outros ficaram exauridos. Mas há quem persista apostando na ação humanitária como forma de ressignificar sua própria existência neste momento de incerteza.
O voluntariado da emergência climática abre espaço para todo e qualquer tipo de competência: criar aplicativo de conexões, apoio psicológico, força física, tratamento de pets, limpeza, distração de crianças, estética, contação de histórias, construção de casas. Há quem prontamente crie soluções inovadoras para problemas reais, como uma rede de lavanderia solidárias para lavar as roupas dos desabrigados.
É hora de reforçar a imunidade. Esculpir a saúde emocional de dentro para fora. O Metrópoles conversou com pessoas que viraram heróis de seus amigos e de pessoas que nunca viram antes. Essa pequena amostragem de histórias simboliza um grupo que alimenta a esperança de futuro no sul do Brasil. Com quase 12 horas de trabalho por dia, investimentos do próprio bolso, redes mobilizadas, superação do estresse emocional, noites sem dormir, eles e elas são razões para acreditar que, aos poucos, o povo gaúcho vai reencontrar o caminho de volta para casa.
Esperança por água, terra e ar
Quando percebeu o tamanho da catástrofe, o professor de Direito Civil Giuliano Tamagno decidiu recorrer aos amigos que tinham helicópteros e barcos para apoiar no resgate. Começou atuando por água, com barcos de resgate, depois foi para os ares. Do aeroclube de Belém Novo, em Porto Alegre, ele e sua turma de 50 pessoas distribuem donativos em 3 aviões e 4 helicópteros particulares. O destino das entregas são cidades do Vale do Taquari, como São Jerônimo, onde pouca ajuda alcança. “Chegamos a improvisar um caminhão pipa e distribuir água para quem estava sem”, relata.
Solidariedade acadêmica
Articulando seus conhecimentos de comunicação, estudos sobre crise e uma rede de pessoas ligadas ao meio universitário, a professora e consultora Rosângela Florzack criou um grupo que articulou centenas de entregas. Do dia para noite, viu sua comunidade de apoiadores crescer de 30 para 400 voluntários. A rotina de aulas e pesquisas foi interrompida para intermediar doações, conectar parceiros, acolher pesquisadores e dar o suporte a diversos atores de dentro e fora da instituição onde trabalha. “Foram horas e horas fazendo aquilo que era possível fazer”, recorda.
Guardiã da Biblioteca Girassol
Integrante de um coletivo cultural no bairro Sarandi, em Porto Alegre, Priscila Macedo, responsável pela biblioteca comunitária Girassol, diz que a enchente impactou as casas e a sede do espaço que há dez anos tem apoiado as pessoas por meio de empréstimos de livros, saraus, eventos de música na praça e grafite. Agora, ela trabalha para recuperar o espaço. “O que mais a gente quer é poder voltar a nossa rotina”, conta.
Da teoria à pratica
Professor da área de gestão de desastres, o engenheiro Maurício Paixão foi acionado por algumas prefeituras quando começaram os primeiros deslizamentos. Mas assim que o nível do Guaíba começou a subir, deixou a teoria de lado e partiu para a ação. Ele coordenou uma equipe que atuou nos resgates. Diz ter perdido a conta de pessoas que tirou de dentro d’água. Ele relata que foi um misto de tensão e adrenalina.
Chegou a realizar resgates sob rajadas de metralhadora, tiros, choro, gritos, pavor. Das situações vividas, duas marcaram sua memória. Um senhor que foi resgatado após ter caído de um telhado, com suspeita de fratura, e um casal encontrado rezando, sozinho, em um loca escuro onde não havia mais ninguém. “Dentro do possível, fizemos nosso melhor””, afirma.
Vozes negras e plurais
A frente do Instituto Negras Plurais, a contadora Caroline Moreira mapeou quilombos, territórios negros e aldeias indígenas impactados pelas cheias para fazer chegar as doações captadas pelo grupo de mais de 170 voluntários. “Fomos fazendo o levantamento de quem precisa e de quem pode entregar. Recebemos o pix, compramos e entregamos”. Na sua rede estão donos de caminhões, barcos, lanchas. Tem equipe de social media, imprensa, segurança, logística. O que é faltam são recebidos. “Estamos virando grandes para ajudar os pequenos”.
Das montanhas para o Guaíba
Acostumada a escalar montanhas, enfrentar tubarões e praticar todo tipo de esporte radical que você imaginar, a médica, apresentadora e atleta Karina Orliani veio de São Paulo, onde mora, e passou o aniversário atuando nos resgates. Ela deixou a filha pequena, com quem compartilha o programa ‘Kora Mundo Afora”, para apoiar as vítimas das enchentes. “Fazer a ponte entre a solidariedade entre as pessoas que estão doando e as que estão precisando receber é um verdadeiro presente”.