Voadoras, capacetadas e agressões. Entenda fúria contra desconhecidos
Casos de violência, especialmente relacionados a brigas de trânsito, estão cada vez mais frequentes. Veja explicações
atualizado
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Nos últimos dias, brigas e casos de fúria associados a brigas de trânsito tomaram os noticiários. As cenas são chocantes não só pela violência explícita, mas também pela exposição do nível de intolerância e adoecimento social atual. A maioria das histórias envolve ameaças e vias de fato, mas em situações mais graves há registros até mesmo de lesão corporal e homicídio.
O trânsito já é um habitat afetado pela violência causada pela imprudência de motoristas, mas nesses casos ela extrapola: nas brigas no meio de ruas e avenidas, após acidentes, não é rara a presença de um personagem que quer ter razão e fazer justiça com as próprias mãos.
Mas o que leva uma pessoa a perder a cabeça e tomar atitudes tão violentas? Por que esses eventos têm se tornado cada vez mais recorrentes? E qual a explicação para o trânsito ser um gatilho para tantas brigas? Leia a reportagem até o final e veja a explicação de uma psicóloga sobre o assunto.
Voadora fatal
Em Santos, no litoral paulista, um homem de 77 anos morreu após ser agredido com uma “voadora” pelo motorista de um carro que teria se irritado com ele. A agressão contra Cesar Fine Torresi aconteceu na tarde de sábado (8/6), quando ele atravessava a Rua Pirajá da Silva, no bairro Aparecida, de mãos dadas com o neto de 11 anos.
Segundo a polícia, o trânsito estava parado e o idoso e o neto atravessaram a via entre os carros — o que teria motivado a fúria do motorista, Tiago Gomes de Souza, de 39 anos. Ele teria avançado com o veículo sobre os dois, e o avô precisou se apoiar no capô do carro, sem causar danos.
O neto contou à polícia que, depois disso, o motorista saiu do carro e os alcançou na calçada. Em seguida, chutou o peito de seu avô, que caiu desacordado. Uma equipe do Samu fez o primeiro atendimento ao idoso e o encaminhou à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Zona Leste. Mas a vítima morreu após sofrer três paradas cardíacas.
Após a agressão, o homem de 39 anos se escondeu em um comércio próximo, mas acabou preso logo depois em flagrante pela Polícia Militar. Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o caso foi registrado como lesão corporal seguido de morte na Central de Polícia Judiciária (CPJ) de Santos.
Durante a reconstituição do crime, nessa quinta-feira (13/6), o homem teria chorado e se ajoelhado pedindo perdão pelo ato que resultou na morte de Torresi.
Flagrado por câmeras
Em Fortaleza (CE), um motorista de aplicativo foi flagrado por câmeras de segurança vandalizando e dando uma “voadora” num portão de um condomínio, na segunda-feira (10/6). A motivação teria sido a demora para abrir o portão. As imagens mostram o motorista deixando o condomínio e retornando para pegar impulso e dar a voadora. Em seguida, ele deixa o local.
Segundo um morador do prédio, que preferiu não se identificar, o condutor estava com um passageiro que pediu para que ele entrasse no condomínio, pois portava compras e era mais seguro desembarcar na área interna do local.
“Ele entrou normal. Ajudou a retirar as coisas do carro. Aí, na hora de sair, se irritou com o porteiro, por conta da demora para abrir o portão. Saiu, mas voltou e fez isso aí. Deixou todo mundo aqui, os moradores, assustados”, disse a testemunha ao g1.
O motorista, que prestava serviço para a Uber no momento do ocorrido, teve a conta suspensa pela empresa. Já a Uber lamentou o caso e reforçou considerar inaceitável o comportamento registrado no vídeo.
Capacetadas
No interior de Goiás, um homem de 70 anos foi agredido a golpes de capacete, no último domingo (9/6).
Em relato no boletim de ocorrência (BO), a vítima disse que ia buscar a neta numa missa, quando foi agredido. Ele contou que parou o carro em um cruzamento obrigatório e, no mesmo instante, o motociclista que estava acompanhado de uma mulher na garupa, parou quase em frente ao carro dele.
Conscientização sobre saúde mental
De acordo com Flávia Martins, psicóloga clínica e de trânsito, os casos de agressões, violência e até morte envolvendo estresse no trânsito não podem ser analisados de forma generalizada pela psicologia. Segundo ela, cada caso é único e precisa ser examinado de forma abrangente por um psicólogo de trânsito.
“O ideal seria que essas pessoas tivessem a CNH suspensa, com intervenção da polícia dentro das medidas cabíveis, e que, principalmente, fossem encaminhadas para tratamento psicológico para tratar a ansiedade e a agressividade, sendo a saúde mental e o comportamento desses indivíduos monitorados por um tempo”, afirma a psicóloga.
Flávia aponta a importância dos cuidados com a saúde mental para que os motoristas estejam mais preparados para lidar com os contratempos que envolvem o trânsito. “Quando se fala de fúria, imediatamente me vem à mente o filme ‘Um dia de fúria’, no qual o ator, diante do acúmulo de estresse, descarrega toda sua raiva no trânsito. E podemos chamar a atenção para a falta de cuidado com a saúde mental do condutor, a educação de trânsito falha, o excesso de trabalho e as funções acumuladas”, destaca.
“Sou defensora do trabalho da psicologia de trânsito e atendo diversas pessoas que vivem traumas ligados a isso. Percebo o quanto é importante que esse trabalho seja realizado em nível nacional. Precisamos expandir e conscientizar as pessoas de que o fator humano será o grande diferencial para um trânsito mais seguro e harmônico. É importante que o Detran, os CFCs, às secretarias de mobilidade, às escolas e às faculdades desenvolvam mais políticas públicas voltadas para a humanização do trânsito e para o cuidado da saúde mental, acima de tudo”, ressalta Flávia.
Para a psicóloga clínica Letícia Alves Pereira Porto, especializada em questões ligadas ao trâfego e ao universo jurídico, já foi “identificado e constatado que condutores e motoristas que perdem o controle com facilidade podem explodir em qualquer situação, mesmo que corriqueira, apresentando comportamentos de fúria, ataques de raiva e descontroles cada vez mais comuns e frequentes provocando cenas assustadoras”.
Para Letícia, é como se essas pessoas “se transformassem” no trânsito. “O ato de dirigir vai além da habilidade motora, envolve também aspectos emocionais que afetam diretamente a habilidade dos motoristas tanto de forma positiva como negativa.”
Tendência
A psicóloga Flávia Martins diz que a tendência atual é de que os casos de violência no trânsito aumentem, caso não sejam adotadas medidas de cuidado com a saúde mental dos motoristas.
“Diante do ritmo frenético em que a sociedade está vivendo, da falta de políticas públicas para a melhoria do transporte coletivo e das vias, e também do aumento de motoristas de aplicativos, tanto para carros quanto para motos, as pessoas têm passado a maior parte do dia em um contexto estressante. A tendência é que esses casos aumentem, caso não sejam adotadas medidas de cuidado com a saúde mental dos motoristas”.
Ainda segundo a psicóloga, o cérebro humano fica hiperativado quando está na direção de um veículo por ter várias funções cognitivas trabalhando, bem como a região das emoções. “Isso somado ao estresse que a pessoa vive no dia a dia, como problemas pessoais, financeiros e cobranças no trabalho, pode ser um gatilho para brigas violentas. É como se a pessoa descarregasse toda a raiva acumulada”.