Vítimas de Mariana lutam por justiça há 8 anos: “Não são 8 dias”
Testemunhos de vítimas do rompimento da barragem em Mariana revelam a atual situação nas áreas atingidas e o pouco que mudou desde 2015
atualizado
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A tragédia da barragem em Mariana (MG), considerada um dos maiores desastres socioambientais ocorrido nos Brasil, completa, neste domingo (5/11), oito anos. No total, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram atingidas direta ou indiretamente pelo mar de lama, sendo que 19 perderam a vida. Atualmente, 700 mil vítimas lutam na Justiça pela reparação integral dos danos sofridos.
“A gente não entende onde está essa Justiça que fala que vai resolver e não resolve. Oito anos não são oito dias, é muito tempo de espera. Esse crime trouxe sofrimento e luta muito grandes. Não fomos preparados para nada do que aconteceu. Nossa comunidade era pequena, mas era alegre. Hoje, ela parece um lugar fantasma”, lamenta a quilombola Vera Lúcia Aleixo, 66 anos, moradora da comunidade ribeirinha de Gesteira, em Barra Longa, Minas Gerais, e vítima do rompimento da barragem de Fundão.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) organizou a campanha intitulada “Revida Mariana”, que tem como objetivo fazer com que o crime não caia no esquecimento. Mais de 100 entidades da sociedade civil, do Espírito Santo, da Bacia do Rio Doce, do Brasil e do mundo fazem parte do manifesto.
“A imensa maioria da sociedade acredita que já foi resolvido o problema, que isso não é mais uma questão central socioambiental do Brasil. Nós estamos falando do que é o maior crime da mineração da história do mundo, um crime ambiental sem precedentes e que destruiu, basicamente, toda a quinta maior bacia hidrográfica do nosso país”, critica Heiter Boza, coordenador nacional do MAB e um dos porta-vozes da campanha Revida Mariana.
De acordo com relatório produzido em fevereiro de 2016 pela Força-Tarefa Barragem do Fundão, com base em dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), que analisou os efeitos e desdobramentos do rompimento da barragem, os danos podem ser divididos em ambiental (qualidade da água, qualidade do solo e perda de biodiversidade), material (economia e infraestrutura) e humanos (saúde pública, segurança, educação, cultura, lazer e social) em escalas microrregionais e macrorregionais.
Danos ambientais
Ainda segundo o levantamento, o rompimento da barragem despejou mais de 50 milhões de metros cúbicos de material tóxico, aproximadamente, 46,3 mil piscinas olímpicas de rejeitos de minério de ferro e sílica, em 41 cidades e três reservas indígenas, em uma área equivalente a mais de 220 campos de futebol, na Mata Atlântica.
Segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a análise de toda a área atingida pelos rejeitos de minério da barragem mostra que pelo menos 400 espécies da fauna e flora foram impactadas pelo desastre. Entre elas de 64 a 80 espécies de peixes; 28 de anfíbios; de 112 a 248 de aves; e 35 de mamíferos.
Para a mestre em ciência ambiental Maria Cecilia Wey, que atua no vale do Rio Doce — afetado pela lama — , a reversão da situação ambiental deixada pelo rompimento é complicada.
“Tem coisas que nunca serão reconquistadas. O Parque Estadual do Rio Doce, por exemplo, perdeu espécies de fauna que não serão recuperadas. Por outro lado, uma parte das margens do rio, principalmente a parte mais alta, onde a lama desceu inicialmente, foram refeitas. Então, a depender do dano, a gente pode ver algum tipo de recuperação”, explica Maria Cecília.
Rio sagrado
Para alguns indígenas, o Rio Doce é sagrado. Para além da perda da biodiversidade e o impacto dos metais pesados na região, o rompimento da barragem representa perda de ancestralidade.
“O rio foi morto, matou nosso rio, nosso grande rio… Tirou tudo que ele dava para nós, para comer. O sentimento foi… Não tem explicação, né? Quando tira uma coisa de você, que a natureza te deu, quando tira seu direito de liberdade, seu direito de ir e vir, seu direito de lazer, o direito de um povo originário”, desabafa a cacique Mniamá Purí Deuáma de Itueta, do povo Pury, atingido pelo rompimento da barragem.
Um dos caciques Krenak, Maycon Krenak, 23, contou que a tragédia de Mariana “mudou completamente” o modo de vida da comunidade. Entre essas diferenças está o envio de caminhões-pipa com água para os indígenas se banharem, já que o Rio Doce secou e ficou impróprio para esse uso. “A água do caminhão, às vezes, vem suja de ferrugem e faz o corpo pinicar quando a gente toma banho. É uma alergia, uma coceira que incomoda”, reclama.
A falta do rio também fez com que os mais novos perdessem o contato com a água, e algumas crianças, segundo Maycon, aprenderam a nadar em caixas d’água.
“O que eu vejo é que eles querem apagar o povo Krenak de alguma forma do nosso lugar. Nós nos identificamos como, no português, os indígenas do Rio Doce. Quando eles tiram o Rio Doce da gente, querem tirar essa identidade nossa. Mas estamos aqui lutando, somos resilientes e buscamos resistir para existir. Eles não conseguem nos tirar daqui e acabar com a nossa história. O Rio Doce é nosso pai, a nossa mãe, que nos deu de comer por gerações.”
O cacique luta na Justiça, representado pelo escritório de advocacia Pogust Goodhead, para ser compensado pela ruptura da barragem. “Quando a gente busca indenização, a gente busca falar a língua das grandes empresas, do capital. É onde elas sentem alguma dor. Quando for falar de sentimento, essa língua com eles não funciona. O que eles fizeram é irreparável, não tem dinheiro no mundo que pague”, diz.
Saúde das vítimas
Em 2018, três anos após a tragédia, um estudo coordenado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revelou que 12% dos afetados pelo desastre sofriam de estresse pós-traumático. Entre as crianças e adolescentes o índice era maior, chegando a 83%.
À época, os pesquisadores entrevistaram 271 atingidos pelo rompimento, que apresentaram depressão, ansiedade, insônia, aumento de problemas cardiovasculares e pensamentos suicidas. Ainda segundo o estudo, três a cada 10 vítimas tiveram depressão. Entre as crianças e adolescentes a incidência era de 39%.
Regiane Soares, 48, faz parte da comunidade de Mascarenhas, no Município de Baixo Guandu (ES). Antes do desastre ambiental, em 2015, era pescadora. Ela conta que, atualmente, toma 18 comprimidos por dia.
“Quando você põe a cabeça no travesseiro e olha oito anos atrás, o que era a sua vida, dá um desespero”, desabafa Regiane. “Nenhuma família ribeirinha pescadora e nenhum atingido está isento de ter uma pessoa dentro de casa sem um quadro de depressão, sem um quadro de insônia. O estresse vem devido a não conseguir se reinventar e trazer uma nova vida para si.”
Para a psicóloga e psicanalista Juliana Camargo, o fato de os transtornos mentais perdurarem por anos após a tragédia revela possível desdobramentos do trauma. “É preciso considerar que a não resolução legal pelas autoridades tem impacto simbólico e importante, porque dificulta a elaboração do próprio trauma e mantém o sentimento de desesperança”, analisa.
A quilombola Vera Lúcia Aleixo, 66, moradora da comunidade ribeirinha de Gesteira, em Barra Longa (MG), conta que, além dos prejuízos psicológicos, o consumo de água contaminada é uma suspeita para o diagnóstico de câncer do marido, há um ano. “Em agosto do ano passado, meu marido manifestou um câncer no pescoço. Temos certeza de que foi pelos metais pesados. Não só ele, várias pessoas se foram. Causou-nos muita depressão, problema de alergia. Oito anos sem melhorar”, conta.
Na Justiça
Em 5 de novembro de 2015, o Brasil testemunhou uma das maiores tragédias ambientais e humanas da história: o rompimento da barragem de Fundão, na cidade de Mariana, Minas Gerais. Um evento que deixou um rastro de destruição ambiental que ecoa até hoje.
A barragem, de propriedade da Samarco, resultado de uma associação entre as gigantes da mineração Vale e BHP Billiton, continha resíduos de ferro. Naquele dia, um colapso liberou mais de 50 milhões de metros cúbicos de lama tóxica e rejeitos, de acordo com o Ministério Público Federal (MPF), e inundou comunidades, devastou o meio ambiente e causou a morte de 19 pessoas.
Nenhum dos 26 acusados foi punido. Os reassentamentos prometidos não foram concluídos, e as vítimas aguardam indenização.
Atualmente, 15 réus foram excluídos do processo criminal por decisões judiciais, e não respondem mais por nenhum crime. O interrogatório dos acusados, a partir de denúncia oferecida pelo MPF, começa nesta segunda-feira (6/11). O desfecho do caso está previsto para 2024.
São responsabilizadas as empresas BHP, mineradora anglo-australiana; Vale, multinacional presente em 20 países; e Samarco, associada da BHP e da Vale, responsável pela barragem de Fundão.
Germano da Silva Lopes, gerente operacional da Samarco à época do desastre, será o primeiro a ser ouvido. O então presidente da mineradora, Ricardo Vescovi de Aragão, prestará depoimento em 8 de novembro e, no dia seguint,e será a vez das empresas Vale e BHP Billiton. A Samarco será ouvida em 13 de novembro.
Reassentamentos não entregues
A Fundação Renova é a entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. Atualmente, são desenvolvidos 42 programas e projetos, divididos em três eixos temáticos, nos 670 km de área impactada ao longo do Rio Doce e afluentes. As ações em curso são de longo prazo.
Um dos eixos temáticos é o de reconstrução e infraestrutura. Nele, é trabalhada a frente de atuação dos reassentamentos.
“Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira foram destruídas integralmente, então, o compromisso da Fundação Renova, das empresas Vale, BHP e Samarco é reconstruir essas comunidades. Não é só fazer a casa, é criar um bairro novo; por isso que o nome é reassentar”, detalha Heider Boza, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens.
Entretanto, de acordo com o coordenador da MAB, os reassentamentos não foram todos entregues. “Eles ficaram sempre pedindo mais prazo e, oito anos depois, ainda não foi tudo entregue”.
Segundo o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o prazo inicialmente informado pela Fundação Renova, era março de 2019. Depois, a partir de decisão judicial, foi fixado 27 de agosto de 2020. Por fim, uma nova determinação da Justiça definiu 27 de fevereiro de 2021 como data para entrega das casas.
O Metrópoles entrou em contato com a Fundação Renova, que declara, em nota, que foram solucionados 405 casos de restituição do direito à moradia, com a entrega do imóvel ou o pagamento de indenização, e outros 284 já têm solução definida, de um total de 719 casas, comércios, sítios, lotes e bens coletivos. Sobre o número total de moradias a serem entregues a reportagem não obteve resposta até esta publicação.
Em relação aos reassentamentos coletivos de Bento e Paracatu, a Fundação afirma que 72 imóveis (casas, comércios, sítios e lotes) foram entregues aos novos moradores. Dos 248 imóveis previstos em Bento, 168 estão com obras finalizadas. Em Paracatu, dos 93 imóveis previstos, 66 estariam finalizados até 29 de setembro.
Ainda em nota, a Fundação Renova diz que, em razão da pandemia da Covid-19, o número de colaboradores em campo precisou ser reduzido a fim de minimizar os riscos e preservar a segurança dos trabalhadores, o que impactou no cronograma de obras. Sobre o prazo para a entrega das obras, o Metrópoles não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Contudo, entre 2020 e 2021, a Renova gastou quase R$ 2 bilhões em reconstrução e infraestrutura.
Em fevereiro de 2021, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ajuizou uma Ação Civil Pública, pedindo a extinção da Fundação Renova devido aos problemas de governança da entidade, traduzidos em desvio de finalidade e ineficiência.
“Faltam resultados, falta reparação, falta boa vontade das empresas: falta empatia e humanidade para com as pessoas atingidas. Cinco anos depois, as duas maiores empresas de mineração em todo o mundo não conseguiram reconstruir um único distrito”, concluiu a ação.
Até o momento, a Fundação Renova gastou R$ 6 bilhões, desde 2015, com reconstrução e infraestrutura, segundo o painel de dados sobre gestão financeira da organização.
Indenizações
Segundo dados da Fundação Renova e Samarco, até setembro de 2023, foram gastos cerca de R$ 14 bilhões com indenizações. Esses valores dizem respeito ao pagamento de danos morais, de perdas materiais e de lucros cessantes, isto é, os ganhos financeiros que os trabalhadores afetados deixaram de obter após o rompimento da barragem.
Um dos sistemas criados para realizar o pagamento foi o Sistema Novel, de 2020. A partir de decisões judiciais, foram determinados pagamentos a categorias informais, como artesãos, carroceiros, lavadeiras, areeiros e pescadores, além de pescadores profissionais, proprietários de embarcações e empresas como hotéis, pousadas e restaurantes.
Através do Sistema Novel, os trabalhadores de categorias informais recebem indenizações que variam entre R$ 71 mil a R$ 161,3 mil, sendo o valor mais alto de R$ 567,5 mil, destinados a proprietários de embarcações camaroeira. O MPMG contesta os valores e procedimentos associados ao sistema.
Heider Boza, coordenador do MAB, afirma que a justiça só será, de fato, feita, quando as vítimas forem inseridas nos debates sobre as reparações. “Não vamos aceitar um acordo feito a portas fechadas entre empresas e governos. Se temos um governo democrático, ele precisa colocar os atingidos no centro do debate”, defende.
O que dizem as empresas
O Metrópoles entrou em contato com as empresas Samarco, BHP e Vale. Confira a nota:
“O rompimento da barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015, marcou nossa história e nunca será esquecido. A Samarco, com o apoio de suas acionistas Vale e BHP Brasil, reforça o compromisso com a reparação integral dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, viabilizando medidas de reparação em favor da sociedade e do meio ambiente, garantindo total suporte para que a Fundação Renova execute as ações conforme previsto em Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).”