Vida na balsa e medo da polícia: a rotina do garimpo no Rio Madeira
O Metrópoles esteve no local do Rio Madeira onde 600 balsas se reuniram, nas últimas semanas, numa nova corrida do ouro
atualizado
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Enviados especiais a Autazes (AM) – O impacto de cenas como as da floresta amazônica rasgada por crateras na reserva indígena Yanomami, no extremo norte do Brasil, ou centenas de balsas formando paredões no Rio Madeira, já próximo a Manaus (AM), traz para o centro do debate público a questão do garimpo no país.
Um dos motores da economia brasileira desde o período colonial, a mineração permanece um assunto mal resolvido, no qual as fronteiras entre o legal e o ilegal são turvas, e os dados sobre a dimensão do problema, incertos.
Garimpeiros ouvidos pelo Metrópoles reclamam do desinteresse do Estado em resolver a burocracia e da lentidão nos processos de licenciamento. Também dizem ser frequentemente taxados como bandidos e destruidores da natureza.
Esse ressentimento foi constante nas conversas que a reportagem teve com alguns dos participantes da corrida do ouro que aconteceu, nas últimas semanas, num trecho do Madeira a pouco mais de 100 km da capital do Amazonas.
O episódio causou comoção nacional e internacional. A repercussão afugentou as balsas para outros pontos do rio, onde o garimpo continua, mas as autoridades federais deflagraram uma operação de combate à extração ilegal e atearam fogo em embarcações, no sábado (27/11). De acordo com o ministro da Justiça, Anderson Torres, ao menos 69 balsas foram incendiadas.
Em agosto deste ano, a Justiça Federal condenou o Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam) a anular licenças concedidas pelo governo estadual para a extração de ouro no Rio Madeira.
De acordo com a decisão, não foram realizados estudos de impacto ambiental antes da concessão dessas autorizações. A ausência desse requisito impossibilitou a identificação dos danos ambientais provocados pelo uso de mercúrio nessa atividade econômica.
Os garimpeiros que conversaram com a reportagem afirmam que não jogam o mercúrio no leito do rio. “É caro, difícil de comprar [pois é ilegal]. Custa até R$ 1.500, que não vem quase nada, porque ele é pesado, então o quilo é só um pouquinho. A gente, então, recolhe o material depois do processo, tem uma ferramenta que dá para recolher praticamente tudo e usar de novo. Seria loucura desperdiçar o azougue [como é chamado o mercúrio na região], além do que a gente sabe que faz mal para a natureza”, conta Henrique [os nomes completos não serão divulgados, a pedido dos entrevistados], de 26 anos.
Em entrevista ao Metrópoles, os garimpeiros fluviais relatam uma dura e perigosa rotina de trabalho. Eles dizem que encontraram na atividade a opção possível para ter renda e, por isso, sonham com a legalização desse tipo de exploração.
Os mineradores alegam que querem recolher impostos. Assim, seria possível tirar a polícia e a fiscalização dos órgãos ambientais de uma lista de temores que inclui a ação de piratas e o risco de naufrágio trazido pelas tempestades.
Veja imagens dos garimpeiros no Rio Madeira:
“Do jeito que dizem, parece que somos o maior problema do Brasil, mas o que eu vejo aqui são trabalhadores tentando ter uma vida digna, tentando prover para suas famílias, fazendo um serviço duro”, argumenta o amazonense José Ricardo, de 23 anos, que chegou a Autazes na quarta-feira da semana passada (24/11), trazendo na balsa a esposa e a filha, de 1 ano e 1 mês.
Para tentar recuperar ao menos os custos da viagem, ele e alguns companheiros resolveram ficar mais um dia depois que a maioria dos garimpeiros deixou o local na quinta.
Das cerca de 600 balsas que chegaram a se reunir nesse trecho do Madeira, havia só 10 na sexta (26/11). “Como os outros, soubemos que estava dando ouro aqui e viemos, mas chegamos tarde”, lamentou ele, que teve os primeiros contatos com o trabalho no garimpo ainda criança.
“Minha família era muito pobre, meu pai morreu quando eu era criança e eu não tive a oportunidade de estudar”, contou. “Sem estudo, não consigo outro emprego que dê para sustentar a família, não consigo carteira assinada. As coisas são muito caras e, se eu for fazer outra coisa [que não o garimpo], são bicos”, relatou ainda o garimpeiro.
Ele diz sonhar com um futuro melhor para a filha: “O estudo que eu não tive eu sonho em dar para minha filha. Para ela ter um bom trabalho, com segurança, talvez ser uma autoridade, e ter o que eu não consegui. Eu tive que me virar, porque queria comprar uma roupa pra vestir e não podia, queria sair para uma festa, comer alguma coisa, mas não podia, não tinha dinheiro”.
Segundo os garimpeiros, a renda gerada pela atividade fluvial gira entre R$ 4 mil e R$ 8 mil por mês para cada um, ganho difícil de conseguir em outra atividade para pessoas que, como José Raimundo, raramente têm ensino médio completo ou alguma formação profissional.
Com o que ganham, eles vão montando e aprimorando as balsas, cujo custo final varia entre R$ 100 mil e R$ 300 mil. Essas embarcações geralmente são construídas com madeira (as mais valiosas são de metal) e possuem, na parte superior, acomodações utilizadas para descanso dos tripulantes. Já na área inferior, há um convés – onde fica o motor, a draga que puxa água com areia e ouro no fundo do rio, e um sistema para peneirar esse material. O equipamento assemelha-se a uma espécie de tapete, no qual o metal, que é mais pesado que os sedimentos, vai se acumulando.
O material depositado nesse tapete consiste no metal precioso pelo qual os garimpeiros anseiam. É nesse momento que entra em cena um dos maiores vilões ambientais do processo de mineração: o mercúrio, que serve para separar o elemento a ser coletado dos demais sedimentos, como areia e água.
Veja o processo e um pouco da rotina dos garimpeiros:
Danos ambientais e econômicos
É difícil confirmar o que dizem os garimpeiros sobre o cuidado com o mercúrio. Os que atuam no segmento fluvial, como acontece no Rio Madeira, argumentam que a atividade não impacta como o garimpo em terra firme e nos barrancos de rios, como o feito com maquinário pesado na reserva Yanomami.
As pesquisas feitas sobre o impacto do garimpo, porém, revelam um cenário de destruição ambiental e enormes prejuízos econômicos para o país.
Um estudo feito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), estimou que aproximadamente 100 toneladas de mercúrio foram utilizadas entre 2019 e 2020 para a extração ilegal de ouro no Brasil. Essa atividade, quando realizada em conformidade com a legislação, normalmente é promovida por empresas mineradoras que executam outros processos industriais.
O mesmo estudo apontou que foram comercializadas 174 toneladas de ouro no Brasil nos dois anos anteriores e que, desse total, só 34% tinham origem comprovadamente legal.
O baixo percentual de legalidade comprovada e a falta de mecanismos de rastreamento inviabilizam que o comprador final do ouro, em forma de joias, por exemplo, identifique se o produto provém de áreas de exploração onde crianças Yanomami têm morrido de desnutrição e malária.
Mais irregularidades foram apontadas pelo estudo, em 28% do volume de ouro negociado no país. Em 38%, as guias de pagamentos da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) não apresentavam informações geográficas, que deveriam ser obrigatórias.
Outro levantamento, publicado em dezembro de 2020 pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg), mostrou que a Amazônia tinha 4.472 locais de garimpo ilegal identificados, sendo 2.576 em território brasileiro.
Esses números ajudam a estimar o tamanho do problema da extração ilegal de ouro, pedras e outros metais preciosos, mas os dados ainda não abrangem a completa dimensão do problema. Só na reserva Yanomami, as lideranças avaliam que há 20 mil garimpeiros operando ilicitamente. Já no Rio Madeira, apenas em Autazes, foram cerca de 2 mil garimpeiros que se reuniram na mais recente corrida do ouro.
Poder público ausente
Na gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que se coloca como aliado dos garimpeiros e chegou a enviar ao Congresso um projeto de lei (por enquanto engavetado) para legalizar a exploração em terras indígenas, o problema parece se agravar.
Os garimpeiros ouvidos pela reportagem, porém, reclamam da falta de ações efetivas rumo à legalização da atividade, mas se beneficiam da lentidão nas respostas das autoridades.
Em Autazes, por exemplo, órgãos como Polícia Federal e Forças Armadas reagiram à denúncia da aglomeração de 600 balsas e ameaçaram deflagrar uma grande operação, mas não estiveram efetivamente presentes quando as embarcações trafegavam na região. O fato permitiu que a maioria dos garimpeiros seguisse para outros pontos do Rio Madeira, onde a exploração irregular segue ocorrendo.
Perigo do mercúrio
O mercúrio adoece peixes e quem os consome, como indígenas e a população ribeirinha da Amazônia. O metal é neurotóxico e se acumula em organismos vivos, o que pode causar lesões graves em determinados órgãos, como os rins, e no sistema nervoso central.
De acordo com o Ministério da Saúde, o envenenamento pelo metilmercúrio (forma que o metal ganha nos rios) causa sintomas como redução da visão periférica, perda de coordenação motora, dificuldades na fala e audição, perturbações sensoriais e fraqueza muscular. Em casos mais graves e duradouros de envenenamento, provoca sequelas irreversíveis e potencialmente fatais.
Em grávidas, o mercúrio ultrapassa a barreira placentária e pode gerar malformações fetais e doenças congênitas.
Veja mais imagens do garimpo no Rio Madeira:
Repercussão política
Apesar da desmobilização das balsas em Autazes, deputados federais do PT protocolaram, no sábado (27/11), uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente Jair Bolsonaro; o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite; e o presidente do Instituto Brasileiro do Ibama, Eduardo Bim.
Bohn Gass (PT-RS), Nilto Tatto (PT-SP) e Alencar Santana Braga (PT-SP) pedem que o MPF instaure inquérito civil contra os gestores, devido à falta de contenção do garimpo ilegal no Rio Madeira.