UTI de hospital em Goiás retrata gravidade da Covid em crianças
Na rabeira da vacinação infantil, Goiás registra casos de crianças com Covid que ficam mais de um mês internadas. UTIs públicas estão cheias
atualizado
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Goiânia – Na linha de frente da Covid-19 em pediatrias Brasil afora, uma coisa é dada como certa: a doença é capaz de acometer crianças de maneira tão grave quanto adultos e idosos. Com o avanço da pandemia e a proliferação de novos casos de coronavírus, os leitos pediátricos de unidades de terapia intensiva (UTI) têm sido o destino de diversos pacientes infantis contaminados – de bebês a adolescentes.
Em Goiás, hoje um dos cinco estados com a menor taxa de vacinação infantil (2,55%), entre pequenos de 5 a 11 anos, já foram registradas internações de menores que ultrapassaram o período de um mês. Para além da doença em si, que deixa sequelas, a longa permanência em um leito de paciente grave está longe de ser a situação ideal para uma criança.
Vitória Araújo Gomes, de apenas 5 anos, ficou 21 dias internada em um hospital de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana de Goiânia. A mãe dela, a secretária do lar Juscilene Araújo de Oliveira, 26, chegou a pensar que a filha não sobreviveria. A pequena não tem comorbidades. Ela pegou Covid-19 e influenza H3N2, ao mesmo tempo, e precisou ser intubada.
“Foi um desespero total. Achei que ela não teria chance de voltar para casa, que era algo completamente impossível de acontecer. É um desespero tão grande que você acha que tudo acabou. Ver uma filha frágil e pequena naquela situação faz a gente querer estar no lugar dela. Vê-la intubada, sem poder beber e comer, foi um desespero total”, conta Juscilene.
No dia da alta médica, ocorrida na terça-feira (1/2), Vitória deixou o hospital em clima de festa. Funcionários do local organizaram a comemoração, com balões coloridos, e ela pôde, enfim, voltar para casa. A garotinha se recupera, aos poucos. Agora, viverá uma rotina de retornos periódicos ao hospital para checar o quadro de saúde.
A mãe revela que refletiu bastante no período em que esteve ao lado da filha na UTI. “Não quero passar por isso nunca mais. Às vezes, se ela já estivesse vacinada, poderia ter a doença, mas não a ponto de ficar tão grave como ficou. Que todos os pais levem seus filhos para vacinar, porque você ver uma filha à beira da morte, sem ar e não poder fazer nada é desesperador demais”, afirma.
Na unidade de referência: de bebês a adolescentes
Na ala pediátrica da UTI da Covid do Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), na região noroeste de Goiânia, os profissionais já lidaram com situações bastante delicadas desde o início da pandemia. Já aconteceu, por exemplo, de filhos estarem internados na UTI pediátrica, enquanto o pai ou a mãe se via na UTI para adultos, e todos morrerem. O coronavírus destruiu famílias.
O hospital é considerado unidade de referência para o atendimento de crianças com Covid e hoje tem, entre os pacientes internados, de bebês a adolescentes. Em média, os casos mais graves chegam a ficar até mais de um mês hospitalizados no local, segundo a médica intensivista pediátrica Fernanda Peixoto.
Ela trabalha no Hugol desde março de 2020, portanto desde o início da pandemia no Brasil, e pôde vivenciar os diferentes momentos do enfrentamento à doença até então. Com 27 anos de experiência, conta que nunca havia testemunhado tantos pacientes infantis morrerem por uma mesma doença, e em curto espaço de tempo, como ocorreu com a Covid.
“Crianças morrem em decorrência de vários outros problemas. Às vezes, numa UTI pediátrica a gente perde duas, três crianças numa semana, mas pela mesma doença, em 27 anos de intensivista, nunca tinha visto. Não acho que devemos criar pânico. O que deve ficar para os pais é a possibilidade de os filhos adoecerem e desenvolverem quadros graves. É a minoria, claro, mas a gente não sabe reconhecer quem é essa minoria. Pode pegar qualquer criança. Mesmo crianças que já tiveram Covid podem voltar a ter e desenvolver de forma mais grave”, informa a médica.
Médica alerta para síndrome pós-Covid
A Covid tende a ser uma doença cujos problemas não acabam no momento da cura. As sequelas deixadas por ela podem acompanhar a criança pelo resto da vida. Na experiência médica vivenciada no Hugol, os profissionais verificaram um salto expressivo de casos de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica, conhecida como SIM-P, entre crianças que tiveram Covid no passado.
Os sintomas, muitas vezes graves e que atingem vários órgãos do corpo, podendo provocar miocardite severa, aparecem de quatro a seis semanas após a exposição ao coronavírus. Fernanda Peixoto explica que, mesmo em crianças assintomáticas e cujos pais não suspeitam da doença, a SIM-P também pode aparecer semanas depois, como resultado da Covid. Por isso, testar é tão importante, segundo ela.
Quanto mais cedo o diagnóstico, maiores são as chances de reversão do quadro e de tratamento. O que assustou os médicos do Hugol, além do aumento de casos da síndrome no decorrer da pandemia, foi que, enquanto a Covid acometia, principalmente, crianças com comorbidades, a SIM-P foi capaz de deixar em estado grave e tirar a vida daquelas que não possuíam nenhuma doença crônica.
“Aquela criança que teve Covid e passou despercebida, apenas com resfriado leve, começou a chegar no pronto-socorro do hospital já em estado grave, um mês depois, e com diagnóstico tardio de SIM-P, dificultando o tratamento”, conta Fernanda.
Algumas crianças curadas da síndrome no Hugol ficaram com sequelas irreversíveis. “São crianças que tiveram comprometimento do coração de uma forma que hoje ele funciona como o coração de um senhor idoso”, detalha.
Ela acredita que haverá um novo boom de casos de SIM-P nos próximos meses, em decorrência da elevação da quantidade de novos casos de Covid na população. Como os filhos tendem a pegar a doença a partir do contato com os pais e o aumento de notificações tem se dado, principalmente, entre os adultos, as crianças expostas ao vírus hoje podem se revelar com SIM-P daqui um mês.
Sentimento de culpa dos pais
Ao serem informados sobre o diagnóstico e a subsequente internação dos filhos, a reação dos pais, no hospital, geralmente, é de surpresa. De fato, a SIM-P não é uma síndrome tão comum, mas Fernanda Peixoto frisa que ela é comum o bastante para se tornar um problema de saúde pública.
“Em última instância, o que todos os pais sentem é culpa. Faltou essa informação, desde o início da pandemia”, diz ela, que conta ter lidado com pais extremamente fragilizados e adoecidos durante a internação dos filhos com Covid e SIM-P, no Hugol.
“É muito difícil para eles não terem previsão de quando os filhos poderão ir embora. Muitas vezes, eles relatam angústia ao saírem do hospital para voltar sem saber como vão encontrar o filho. O telefone toca em casa e eles já imaginam que é alguém ligando para dar alguma notícia. É um esgotamento físico e mental”, relata a médica.