Temer minimiza efeitos da nova portaria sobre o trabalho escravo
A Agência Lupa checou a veracidade das afirmações feitas pelo presidente da República em entrevista. Veja os resultados
atualizado
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Na última sexta-feira (20/10), o presidente Michel Temer concedeu entrevista ao site Poder360 e falou da Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho, que muda as regras de fiscalização do trabalho escravo, estabelecidas pelo Código Penal.
O documento vinha sofrendo duras críticas do Ministério Público do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho e até da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Nesta terça-feira (24), uma liminar da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu os efeitos da portaria até o assunto ser julgado pelo plenário do STF.
Na entrevista, Temer disse que o governo tem ouvido sugestões de Dodge e admitiu possíveis mudanças na norma, mas errou ao falar da portaria vigente. A Lupa checou.
Direito de ir e vir
“[Segundo a nova portaria] O trabalho degradante, o trabalho que impõe condições desumanas de vida, é trabalho escravo. Não é só o direito de ir e vir, não”
Presidente Michel Temer, em entrevista ao site Poder360 em 20 de outubro
FALSO
O artigo 149 do Código Penal estabelece que o emprego está em situação análoga à escravidão se houver trabalhos forçados, jornada exaustiva, em condições degradantes ou o trabalhador tiver seu direito de ir e vir restrito. Pelo Código Penal, bastava que uma dessas situações fosse constatada para que houvesse material suficiente para uma denúncia.
A Portaria 1.129, baixada pelo Ministério do Trabalho e já publicada no Diário Oficial, muda o cenário. A partir dela, só existem as chamadas jornada exaustiva e condições degradantes se o trabalhador estiver também com restrição de liberdade.
Por exemplo: se um trabalhador tiver comprovadamente uma jornada de 20 horas por dia, segundo a nova portaria, isso não é suficiente para afirmar que ele tem jornada exaustiva. Para tanto, seria preciso que ele também enfrentasse alguma restrição de liberdade. Resultado: esse trabalhador não estaria em condições análogas à escravidão.O mesmo ocorre com a acusação de condições degradantes. Se um trabalhador for flagrado atuando sem os insumos básicos, como água potável, alimentação ou equipamentos de segurança, mas tiver seu direito de ir e vir garantido, não pode ser configurada a infração.
Leia os trechos abaixo:
“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador.”
“II – jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria;
III – condição degradante: caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade;”
Procurado, o presidente não retornou.
Saboneteira e trabalho escravo
“O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”
Presidente Michel Temer, em entrevista ao site Poder360 em 20 de outubro
FALSO
Para criticar supostos excessos na fiscalização do trabalho escravo, Temer citou e apresentou na entrevista ao site Poder360 documentos de um caso envolvendo a MRV Engenharia, em Americana (SP). Mas este processo envolveu um total de 44 infrações. Entre elas, estava o caso da saboneteira, mas também havia insuficiência de alimentos, o não pagamento de salários e a restrição ao direito de ir e vir do trabalhador por meio da retenção de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).
Em 10 de março de 2011, o Ministério Público em São Paulo e a Gerência Regional de Trabalho e Emprego em Campinas promoveram uma fiscalização nas obras do Condomínio Beach Park. Lá, encontraram 64 trabalhadores em condições análogas à escravidão, com falta de pagamento de salário, alojamento em condições degradantes, falta de registro profissional e com a carteira retida. A Justiça condenou a empresa, que, segundo consta na sentença, não negou os fatos apurados pelo MP-SP. Apenas refutou o “enquadramento de tais condições como trabalho escravo”.
Na sentença, o juiz foi claro: “Como se vê, os funcionários laboravam em jornada exaustiva, tendo seu direito de locomoção tolhido pela ausência de pagamento e pela retenção da CTPS, o que pode ser definido como coerção moral”. Confira aqui a sentença na íntegra.
Raquel Dodge
“Poder 360 pergunta: Ela [procuradora-geral, Raquel Dodge] parece ter pedido a revogação da portaria…
Temer responde: Não, não. Ele [ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira] esteve duas vezes com ela [procuradora-geral, Raquel Dodge] e recebeu sugestões que ela fez.”
Presidente Michel Temer, em entrevista ao site Poder360 em 20 de outubro
FALSO
A entrevista publicada no dia 20 de outubro foi feita pela equipe do Poder360 durante um almoço realizado em Brasília na quinta-feira, 19 de outubro. No dia anterior, a procuradora-geral, Raquel Dodge, havia estado com o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e oficializado o pedido de revogação da portaria. No encontro, Dodge tinha classificado o novo texto “como um retrocesso à garantia constitucional de proteção à dignidade da pessoa humana”.
Procurado, o presidente não retornou.
(Com reportagem de Hellen Guimarães, sob a supervisão de Cristina Tardáguila)