Tatuagem ajuda a ritualizar o luto nos tempos atuais, diz psicanalista
Desenhos e palavras gravados na pele têm função dupla: singularizar a perda e também torná-la coletiva, aponta a doutora Miriam Pinho
atualizado
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O luto é perder alguém perdendo um pedaço de si. A definição é da doutora em psicologia social Miriam Pinho, que estuda a função e o significado de tatuagens no processo de luto. Especialmente em tempos de enterros em massa e despedidas abortadas, é comum que as pessoas busquem maneiras diferentes de externar o sofrimento. Gravar na pele uma imagem ou palavra para eternizar alguém amado que partiu é uma das maneiras cada vez mais usadas com esse intuito.
No desenho, a sombra de um pai ergue a filha rumo ao céu. Sobre ela, um cérebro simboliza o conhecimento, e ao seu lado livros flutuam como pássaros. A enfermeira corporativa Lorena Sabarense, 28 anos, escolheu esses elementos para compor uma tatuagem que homenageia o padrasto, André Luiz Bueno de Freitas, 54 anos, que morreu de forma inesperada, em 2018.
“Ele morreu três dias antes do meu aniversário. Foi internado com dores no corpo, dificuldade de locomoção e não encontraram nada de errado. Depois de uma semana, ele faleceu. Fica uma lacuna muito grande sobre o que aconteceu para ele ter morrido assim”, relata Lorena.
Ela conta que decidiu fazer a tatuagem – a primeira da vida – pois queria sentir o padrasto mais perto de si. O desenho simboliza a paternidade, a maturidade, a liberdade, a intimidade entre eles e o espiritismo. “Ele me deu todo embasamento sobre inteligência, me ensinou a correr atrás da minha profissão, me ajudou nos estudos, me estimulava a ser uma pessoa curiosa”, lembra a enteada.
Uma réplica do olho de André também compõe o desenho. Há também planetas e a simbologia de uma nova vida após a morte. “Depois que fiz a tatuagem eu me senti um pouco melhor por saber que querendo ou não sempre vou lembrar dele, não da morte dele, mas dele como espírito, como pessoa, um ser muito bom. Não é como se tivesse apagado a dor, mas transforma a saudade em lembrança de amor”, afirma.
O psicólogo Cassiano Ramalho Salim, 37 anos, também registrou na própria pele a homenagem à mãe, Cássia Maria, 63 anos, que faleceu em 2016. Foram menos de seis meses entre um diagnóstico de câncer e a morte de Cássia.
“Já tinha reservado um espaço no braço para tatuar algo em homenagem aos meus pais, como fiz para os meus filhos também. Quando minha mãe me ligou para contar que estava com câncer, eu estava no estúdio de tatuagem para fazer um outro desenho. Deixei a sessão para depois e fui encontrá-la”, relata Cassiano.
Meses depois, com o falecimento da mãe, ele voltou ao estúdio, mas dessa vez para concretizar o desejo de tatuar uma imagem de Santa Rita de Cássia, de quem a mãe era devota. “Ela rezava sempre para Santa Rita de Cássia, tatuei também o ano de nascimento da minha mãe e o ano de sua morte. É uma lembrança dela, uma forma de eternizar alguém importante na minha vida”, afirma.
Cassiano escolheu o braço por ser um lugar bem visível, para sempre poder ver o desenho. “Meus filhos olham a tatuagem e lembram da avó, sempre perguntam sobre ela, é uma forma de mantê-la na memória”. O irmão de Cassiano, Tales, também fez uma homenagem à Cássia: tatuou a assinatura dela, igual à que ela gravava nos quadros que adorava pintar.
O educador físico Pedro Jardim, 29 anos, também escolheu como inspiração para tatuagem a assinatura do pai, o advogado Euclides Martins Jardim, que tinha 68 anos quando morreu, em 2006. Quando a morte do pai completou 10 anos, Pedro concretizou a ideia de tatuar uma réplica da firma.
“A gente era super próximo, mas eu não pude aproveitar tanto essa convivência porque eu era muito novo quando meu pai morreu. Eu me lembro muito dele no escritório trabalhando, assinando petições, por isso escolhi a assinatura, que é bonita”, conta Pedro.
Ele encara a tatuagem como uma forma de ajudar no processo de luto e preencher os vazios que ficam com a partida de alguém insubstituível. “A tatuagem simboliza a falta que ele me faz.”
Olhar de frente
A psicanalista Miriam Pinho é autora do artigo Luto em Versão Contemporânea: As Tatuagens Memoriais, parte integrante da pesquisa de doutorado que desenvolveu sob orientação de Miriam Debieux Rosa, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Pinho destaca que a morte não é só um fato biológico, é também um fato político e público. “A morte, assim como o sol, não se encara de frente. Essa é uma frase da sabedoria popular muito pertinente. Desde que se tem notícia, a morte é mediada por um conjunto de crenças e práticas oficiais, sistemas institucionalizados como ritos e práticas sagradas”, explica.
A especialista menciona costumes antigos como fechar a janela quando alguém morre ou parar o relógio. O luto nos tempos atuais passou por um processo de transformação que ela chama de “desritualização”. Antes era mais comum que enlutados recebessem visitas, refeições e havia toda uma movimentação para “parar o tempo” ao redor daqueles indivíduos.
“A morte tornada tabu teve por consequência o declínio ou a supressão dos ritos fúnebres tradicionais e com eles o desaparecimento do público no luto. A produção da tatuagem memorial responde para alguns a essa busca por um rito mais de acordo com os gostos e costumes das novas gerações”, escreve a pesquisadora.
Atualmente, o luto é cada vez mais vivido de forma solitária e privada. “Para quem trabalha, por exemplo, as empresas geralmente só dão três dias de luto. Hoje, o tempo do luto foi abolido”, afirma.
Mesmo em um universo “dessacralizado”, a relação com os mortos não foi esquecida nem abandonada, ela tem se reconfigurado mesmo entre aqueles que não têm nenhuma crença religiosa, como explica Miriam.
“Se o luto é cada vez mais solitário, sobra para o indivíduo encontrar um modo de realizá-lo. Quando realizei a pesquisa, fiz uma incursão pelo mundo da ritualidade. Uma das funções do rito fúnebre é ser humanizante. Quando se quer tirar toda a humanidade da pessoa, ela é impedida a ter acesso a qualquer rito, como os desaparecidos da ditadura e dos campos de concentração”, relata.
Ela afirma que o rito fúnebre é humanizante e tem como função suspender o tempo e a rotina, uma mudança de status de mortos e sobreviventes. “O rito convoca a presença. Dar tratamento coletivo para a dor.”
O trabalho de Miriam aponta que hoje há, mais do que nunca, essa necessidade do direito ao rito, para além de crenças. “É a necessidade de dizer que aquela perda tem valor. Apesar dos ritos terem os mortos como referência, eles se destinam à paz dos vivos. Isso nos faz pensar na divisão social do trabalho do luto: não se faz rito sozinho, então é possível se fazer luto sozinho?”, questiona.
Memorial
A tatuagem entra em cena como um desses ritos modernos que envolvem o luto. Pinho encontrou alguns tipos de escolhas mais frequentes em postagens em redes sociais, que usou como base: as escritas e os desenhos, especialmente de bebês perdidos ou não nascidos, as “baby memorial tattos”.
Pinho notou que nos anos 2000 essa prática começou a se popularizar. “Não é, entretanto, algo novo. No Velho Testamento já tem uma menção em Deuteronômio dizendo que não se deveria fazer ranhuras na pele por conta da perda de alguém. No ocidente, é um fenômeno mais contemporâneo”, descreve.
Durante a pesquisa, Miriam Pinho se perguntou “o que viria a tatuagem a fazer no cerne na dor terrível do luto?” Seria uma recusa do trabalho do luto? Uma frivolidade? O encontro com os relatos a fez chegar a outras conclusões.
Uma das publicações trazia: “A tatuagem é um memorial que vai ficar com você para sempre. A minha é um memorial para o meu bebê que não nasceu. Eu queria algo especial para mostrar que uma vida foi perdida, colocada perto do coração ela me ajuda no luto e serve para lembrar aos outros a minha dor.”
A mãe desenhou uma “pequena abóbora” entalhada perto do coração. A abóbora é um popular símbolo do Halloween, festa celebrada no fim do mês de outubro nos Estados Unidos. O bebê era esperado para este período.
“Eu queria sentir a dor da tatuagem porque eu me sentia entorpecida. Eu precisava me punir um pouco por não ter sido capaz de segurar a gravidez. E principalmente eu procurava algo em que pudesse focar meu pesar, desde que eu não tinha um túmulo para visitar”, disse a jovem.
No depoimento, além da postagem da fotografia da tatuagem, foi incluída uma entrevista com o seu tatuador. Ele revela como as pessoas costumam agir durante a produção da tatuagem memorial: “Cada pessoa traz pelo menos uma outra com quem pode falar e se lembrar da situação. Geralmente, enquanto estão falando e sendo tatuadas, elas só se lembram das coisas engraçadas, boas. De modo geral, posso dizer que elas apreciam o quão catártico é a tatuagem quando, no final, elas ficam com os olhos marejados de lágrimas”.
Outro post analisado explicava: “Quando eu perdi meu pai eu peguei um cartão que ele me deu e tirei a sua assinatura e tatuei no meu pé. Agora ele pode me guiar pelos caminhos, mesmo não estando aqui”.
Corpo, o território da dor
A tatuagem revelou-se como um modo pessoal e privado de prestar tributo fúnebre. “Fora do espaço cemiterial demarca-se no corpo um lugar a partir do qual o morto será olhado, lembrado, carregado para todo lado. Trata-se de uma imagem narrativa. No enlace com o olhar, pede deciframento, faz laço, recompõe um lugar no amor do outro, almeja alcançar voz. Quando alguém se aproxima e pergunta sobre a tatuagem, a pessoa tem a chance de contar aquela história”, descreve a pesquisadora.
A dor de fazer a tatuagem também é simbólica nesse processo. “A dor é afeto por excelência do luto e aparece também como elemento decisivo na escolha por uma tatuagem no período de luto. É transformar o corpo num território da dor, transformar em concreta uma dor que parecia sem limites.”
“Não é que a tatuagem vá processar esse trabalho de luto, a tatuagem é o contrário, vai ser deslocada na medida do próprio trabalho de luto. Muda a forma como estava no início e como será vista no final. Ela tem uma função que se desloca no luto”, destaca Miriam Pinho.
A pesquisadora menciona um paradoxo pensado pelo filósofo Paul Valéry: “Na superfície do corpo, a pele é o que há de mais profundo no homem”, o órgão mais superficial do ser humano é também o mais profundo.
No vídeo abaixo, é possível assistir a uma exposição de Miriam Pinho sobre o tema: