Sob protestos, governo fecha única fábrica nacional de semicondutores
Ceitec, no Rio Grande do Sul, está sendo liquidada porque é uma estatal que não dá lucro, mas especialistas alertam para apagão tecnológico
atualizado
Compartilhar notícia
Como parte do esforço comandado pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, pela redução do tamanho da máquina pública, o governo federal está fechando a única fábrica brasileira – e do Hemisfério Sul – de semicondutores, que servem para produzir chips, cuja demanda mundial tem crescido fortemente.
A liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal federal criada em 2008 e instalada em Porto Alegre (RS), vai significar a dispensa de 180 funcionários de alta qualificação técnica, muitos dos quais só vão conseguir mercado no exterior, num evento que entidades científicas estão considerando um “capítulo dramático” do apagão que atinge o setor tecnológico no Brasil.
Os semicondutores são fundamentais em computadores em geral e estão presentes em itens de consumo e na infraestrutura de comunicações. A Ceitec colocou os seus em animais, para rastreá-los, e em chips de passagem em pedágios, fornecendo um terço dos insumos consumidos nesse setor no Brasil.
Além disso, era o celeiro brasileiro de desenvolvimento desse tipo de tecnologia, mantendo aqui os profissionais de alto nível formados em instituições sustentadas com dinheiro público.
Os motivos
A Ceitec está fechando por decisão do conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) sob o argumento de que não dá lucro e sequer se sustenta. Segundo dados oficiais, a empresa recebeu aproximadamente R$ 600 milhões entre 2010 e 2018 e, mesmo vendendo no mercado produtos como o “chip do boi”, que automatiza o rastreamento do rebanho, acumulou prejuízo de R$ 160 milhões durante seu período de existência.
As projeções avaliam que a empresa caminha para o equilíbrio econômico, que seria atingido entre 2025, no cenário mais otimista, e 2029, no mais pessimista. Mesmo assim, a decisão foi pela extinção (opções para o não fechamento seriam a manutenção, uma parceria com a iniciativa privada ou a privatização).
A empresa já está sendo administrada pelo liquidante, o oficial da reserva da Marinha Abílio Eustáquio de Andrade Neto, que tem no currículo a liquidação de outra estatal, a Casemg, que administrava silos. Ele assumiu em fevereiro deste ano, e tem 12 meses para terminar o serviço.
O militar, que já dispensou 34 funcionários em maio, tem uma lista de mais 40 demissões para as próximas semanas. A associação que representa os funcionários tenta reverter os desligamentos na Justiça do Trabalho e evitar a liquidação com ação no Tribunal de Contas da União (TCU). Até agora, porém, sem sucesso.
Preocupação
O professor Tiago Balen, que coordena o programa de pós-graduação em microeletrônica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atuou na Ceitec como engenheiro projetista e diretor, considera o fechamento da empresa “muito prejudicial para a tecnologia nacional” e resultado de uma visão simplista do governo.
“É a única fábrica de semicondutores do Hemisfério Sul do planeta, com instalações de ponta. A detenção da tecnologia de fabricação de circuitos integrados é crucial no processo de desenvolvimento científico e tecnológico de qualquer país”, argumenta o acadêmico.
“Embora a tecnologia que a fábrica poderia realizar não seja a mais moderna, como a dos processadores atuais, é uma tecnologia capaz de ser utilizada em muitos circuitos integrados de aplicação específica, incluindo diversas aplicações industriais”, complementa Balen.
O professor da UFRGS é testemunha do prejuízo para o país por não dar aos formados na área um mercado para trabalhar e desenvolver tecnologia nacional. “Muitos de nossos egressos, altamente qualificados, trabalharam na empresa. Hoje, o que estamos vendo é que esses profissionais estão na sua grande maioria indo para o exterior”, relata.
“Resumindo, apesar de a empresa ser realmente deficitária, o papel dela ia muito além da geração de lucro. O eventual impacto positivo nas contas do governo será insignificante com a extinção da empresa, especialmente se comparado com os enormes prejuízos para a área de ciência, tecnologia e inovação do país”, conclui Tiago Balen.
As reações
Várias entidades que representam profissionais que trabalham com tecnologia têm protestado contra o fim da Ceitec.
A Federação Nacional dos Engenheiros, por exemplo, enviou carta ao presidente Jair Bolsonaro em que argumenta que a Ceitec “é fundamental para o desenvolvimento da indústria eletroeletrônica do Brasil”. Segundo o apelo, a companhia “genuinamente nacional promove o aumento da independência de empresas estrangeiras”.
“A solução de extinção é fruto de uma análise imediatista e simplista. Ela afeta não só a empresa, mas condena todo o país a continuar no atraso e na dependência de tecnologia importada, abrindo mão de participar de um mercado de alto valor agregado, com os óbvios reflexos negativos, em longo prazo, para a economia e a soberania nacionais”, escrevem os engenheiros.
A Sociedade Brasileira de Computação (SBC), por meio de seu Conselho, divulgou nota em que considera a extinção da empresa “contrária ao interesse nacional de deter know-how próprio em microeletrônica e semicondutores. Essa medida não estabelece parcerias de fato, e irreversivelmente desperdiça a propriedade intelectual, os ativos e investimentos já realizados na única fábrica de difusão de circuitos integrados no Brasil e no centro de projetos da estatal”.
De chips a vacinas
O professor de microeletrônica da UFRGS Sergio Bampi explica a importância da existência de ao menos um polo que pesquise e produza esse tipo de tecnologia no Brasil, lembrando que o país tem hoje vacinas contra a Covid-19 porque investiu em linhas de produção de imunizantes no Instituto Butantan e na Fundação Oswaldo Cruz por décadas.
“Investimento público na parte científica, nos recursos humanos, na linha de produção. Um investimento estratégico que dá ao país, sobretudo neste contexto de pandemia, condições de responder”, explica o docente, que também atuou na Ceitec, mas antes da federalização, em 2008, quando ela era ligada à universidade e a outros entes públicos e privados.
Bampi afirma que, num mercado mundial de US$ 460 bilhões por ano, a importância da Ceitec não pode ser medida apenas pelo fator econômico. “Como produtor, a empresa tem uma expressão muito pequena, mas, como um laboratório, tem potencial muito grande para beneficiar o ecossistema de inovação. Nós temos que fazer inovação no Brasil”, frisa.
Para o professor, o governo erra ao abrir mão desse potencial. “Isso está dentro do contexto de desmonte da capacidade tecnológica e científica que existe dentro do Brasil. E que tá sendo desmontado pela equipe da Economia, porque no ano que vem o idiota do Guedes precisa mostrar uma bandeira para a sociedade: eu acabei com tantas estatais. Ele vê a Ceitec como mais um número”, critica Bampi.
O docente critica ainda o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Quer chegar na eleição dizendo que tirou o Estado das costas dos empresários, abrindo espaço para a iniciativa privada. Mas o empresariado brasileiro não quer investir em um mercado como esse, que é de risco, o empresariado quer se beneficiar da segurança que o Estado dá enquanto critica o tamanho dele. Sem a Ceitec, vamos ficar sem investimento público e sem investimento privado num setor fundamental”, conclui.
A Ceitec e o mercado
A empresa que está sendo extinta pelo governo é uma das oito no mundo com capacidade e certificação para fabricar o chip que vem nos passaportes (mas que a Casa da Moeda não compra, priorizando fornecedores estrangeiros).
A estatal também é a única empresa da América Latina que cobre toda a escala de produção de chips com silício, e já produziu mais de 100 milhões de unidades. Além de fornecer para o mercado, a empresa tem um setor de pesquisa e havia desenvolvido equipamento capaz de testar para a Covid-19.
Foi a primeira empresa que teve chips registrados como desenvolvidos no país e tinha em seu corpo técnico 11% dos funcionários com doutorado ou pós-doutorado e 31% com mestrado.
A Ceitec é ainda fornecedora de outras empresas do setor tecnológico, que agora terão de buscar os produtos no mercado internacional.
Esse mercado está cada vez mais concorrido. Neste mês, duas fábricas da Volkswagen, no Paraná e em São Paulo, interromperam temporariamente suas operações por falta de insumos tecnológicos.
Em nota enviada ao Metrópoles, a montadora informou que “uma escassez significativa de capacidades de semicondutores está levando a vários gargalos de fornecimento em muitas indústrias globalmente”.
E isso ainda teria gerado problemas no abastecimento da indústria automotiva ao redor do mundo. “O resultado são adaptações em toda a indústria na produção de automóveis, o que também afeta as marcas do Grupo Volkswagen”, diz a empresa.
De acordo com o presidente da Associação dos Colaboradores da Ceitec (Acceitec), Silvio Luís Santos Júnior, a empresa poderia se beneficiar nos próximos anos desse cenário de escassez, aumentando a participação do Brasil em um setor no qual todo o nosso continente sofre para acompanhar países que investem muito mais em tecnologia, como a Coreia do Sul.
“Estamos perdendo, junto com a empresa, uma política de Estado, cuja história vem desde a década de 1970, ainda com os militares, que teve um incentivo para a vinda de indústrias de semicondutores nos anos 1980, que recebeu alto investimento do país nessas décadas na formação de recursos humanos. E agora é colocado um ponto final dessa maneira”, lamenta Silvio Luís, que lidera os esforços para tentar reverter a liquidação em instâncias, como o TCU.
Para o funcionário da empresa e sindicalista, a decisão pela extinção terá consequências duradouras para o setor. “O recado é: o Brasil, que formou profissionais muito qualificados, não incentiva a indústria nacional a absorvê-los. Não é aqui que vai se desenvolver tecnologia. Está se dizendo para essas pessoas, que nós formamos, irem morar fora sem produzir nada para o nosso país”.
O legado incerto
Órgão responsável pela Ceitec, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação tem a incumbência de criar soluções para o legado da empresa após o seu fim, dando destino a seu patrimônio físico. Também atua para encontrar posições em outras instituições tecnológicas ligadas ao governo para ao menos parte dos profissionais dispensados. Procurada, porém, a pasta não forneceu mais informações sobre esse processo, que deve envolver a criação de uma organização social para cuidar desse legado.
Ceitec em vídeo
Entenda melhor o trabalho de produção de chips realizado pela Ceitec neste vídeo produzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia em 2017, para divulgar a empresa e explicar sua importância estratégica para o país (na época).