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“Sempre existiram LGBTs nos povos originários”, diz Fabrício Titiah

Ele faz parte de uma nova geração com jovens de várias etnias que têm usado as redes sociais para decolonizar o pensamento sobre indígenas

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Fabrício Titiah
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Ao pensar em uma pessoa indígena, que imagem vem à mente? O imaginário coletivo é permeado por diversos preconceitos e estereótipos que não fazem jus à pluralidade desses povos no Brasil. Jovens como Fabrício Titiah, 20 anos, ativista LGBT+ e escritor do povo Pataxó HãHãHãe, do Território Indígena Caramuru (sul da Bahia), têm usado as redes sociais para “decolonizar” o pensamento racista que permeia essa discussão.

Fabrício publica principalmente no Instagram e no Twitter (@fabriciotitiah), onde cria threads sobre entidades sagradas, mostra o cotidiano na aldeia, fala sobre as mulheres de sua família, discute direitos humanos e cultura pop – de BBB a séries da Netflix.  “Escuto comentários como: Ué, mas se você fosse indígena mesmo não estaria nem aqui escrevendo na internet pelo celular! A gente tem que evoluir esse pensamento”, afirma.

Em entrevista ao Metrópoles, Fabrício falou sobre militância LGBT+ indígena, a importância da inclusão digital nas aldeias, sobre arte, representatividade e fez críticas à série Cidade Invisível, da Netflix, acusada de apropriação cultural.  

Quem é Fabrício Titiah?

Tenho 20 anos, sou indígena do povo Pataxó HãHãHãe, do T.I. Caramuru  (sul da Bahia), onde eu nasci e me criei, e vivo  junto com meu povo. O povo Pataxó HãHãHãe é na verdade um agrupamento de várias etnias, ou melhor, chamamos de famílias étnicas, pois cada família representa uma etnia no território. 

São elas: Baenã e HãHãHãi, que são os originários do território, e Kariri-Sapuyá, Tupinambá, Kamakã e Pataxó que são originários de outras regiões da Bahia, e foram expulsos de seus territórios tradicionais no processo cruel de colonização, e foram agrupados no território Caramuru juntamente com os Baenã e HãHãHãe. Eles enfrentaram vários golpes do Estado e se mantiveram mobilizados juntos por mais de 30 anos pela demarcação do território sagrado.

Eu sou filho de três famílias étnicas: Baenã e HãHãHãe (família paterna) e Kariri-Sapuyá (família materna). Atualmente curso Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Santa Cruz. 

Quando você começou a usar as redes sociais como ferramenta para decolonizar e o que isso significa para você?

Eu tive contato com esse universo muito cedo, lembro do meu primeiro contato com o computador foi aos 5 anos de idade, através da Ong Thydewás, com o projeto de inclusão digital, quando trouxeram a primeira antena de internet e os primeiros computadores para minha aldeia.

E foi através do blog Índios On-line, fruto desse projeto de inclusão digital da ONG Thydewás, que eu iniciei minha trajetória de decolonização através das redes sociais. Lembro que aos 9 anos de idade, durante a retomada pela reconquista do nosso território por completo, eu e meu pai, Fábio Titiah, começamos a escrever para o blog “Índios on-line” narrando a nossa situação, pedindo apoio e, principalmente, desmentindo várias notícias falsas e racistas que os fazendeiros invasores propagavam nas mídias, jogando a população da região contra nós. 

Nós, indígenas, usarmos a internet como uma ferramenta de decolonização é extremamente importante, é sermos os protagonistas de nossa própria história, é trazer as verdadeiras narrativas que os livros de história escrito pelos não-indígenas não retratam sobre nós.

Qual é, na sua visão, a importância do acesso à internet/redes para os ativistas indígenas? Como promover esse acesso?

É de extrema importância, pois somos nós falando por nós mesmo, e isso é muito valioso. A nossa luta não cessa, ela é contínua, e quem nos ataca está sempre se reinventando, e nós, povos indígenas, estamos nos adaptando a estes espaços para utilizar essas ferramentas a nosso favor. 

Eu comecei muito cedo, como mencionei anteriormente, usando a internet como um instrumento de luta, para expor a nossa realidade, as nossas vivências, as nossas necessidades, e trazendo informação. Sendo nós mesmos os contadores de nossas histórias desmistificamos muitos pensamentos equivocados, frutos da colonização, criados em torno do indígena. 

Estamos avançando muito nestes espaços, demarcando as telas, as redes, as linhas do tempo

estamos avançando muito nestes espaços, demarcando as telas, as redes, as linhas do tempo

Você posta sobre diversos temas, entre eles a militância indígena LGBT+. Como começou o seu caminho na defesa desses direitos?

Sou LGBT e há 5 meses fui convidado por Jeferson Pataxó e Laís Eduarda Tupinambá (pioneiros no movimento LGBT+ indígena) para fazer parte do projeto “Papo de Índio”. É um projeto para dialogar sobre gênero e sexualidade para os três povos do sul e extremo sul da Bahia: Pataxó HãHãHãe, Pataxó e Tupinambá. 

Além de trazer o diálogo, o projeto tem o intuito de formar ativistas midiáticos jovens indígenas LGBT+. Esse projeto é muito importante para mim porque agora eu estou me sentindo mais seguro pra levantar a bandeira, por estar conhecendo a vivência de outros parentes LGBT+. No meu povo, bem como nos outros dois povos (temos a realidade bem parecida em todos os aspectos por conta da proximidade) sempre existiram LGBT+. 

Minhas avós, mesmo que ainda com ar de timidez, sempre contaram de mulheres e homens que se relacionavam com pessoas do mesmo sexo “debaixo dos panos”. Mas esse olhar de rejeição e anormalidade veio através do convívio dos indígenas do meu povo com a cultura dos coronéis, que por sua vez tem a vida muito influenciada pelas igrejas cristãs. 

Hoje eu percebo isso, pois para mim  se relacionar com quem a pessoa quisesse sempre foi normal, mas com o tempo eu fui percebendo que para muitos à minha volta isso não era normal. Aí eu comecei a sentir insegurança de expressar e de demostrar esse sentimento. Isso é muito comum com os da minha geração para cá, sendo LGBT+ assumidos ou não.

Qual é o maior desafio como jovem ativista indígena LGBT+?

Hoje o nosso maior desafio é arrancar esse pensamento, que não é originário nosso, porque o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo já era comum entre os povos originários, aos poucos, para assim quebrar os tabus em torno da sexualidade indígena. E ressignificar o que é ser indígena LGBT+ hoje, construir as nossas próprias pautas, as nossas próprias lutas, a nossa própria representatividade. Pois muitas vezes não nos sentimos representados pelo movimento LGBT+.

Você também fala muito sobre arte e mídia nos seus posts. Como você explicaria o fato de que a maioria da população brasileira não consome produtos culturais feitos por artistas indígenas? 

Eu sempre relaciono isso à estrutura que foi enraizada em sempre estarmos sob “tutela” de alguém. Se não fosse essa luta que fazemos para estar nestes espaços trazendo diálogos e pautas sobre nosso povo, a ideia de sempre ter alguém falando por nós se perpetuaria. Estamos avançando, mas ainda assim os nossos trabalhos, nossas artes, nossos produtos ainda têm muito menos alcance que outros não-indígenas. 

Há esse receio em se permitir apreciar um produto criado por um indígena, por esse preconceito devido ao estigma de incapacidade que criaram sobre nós, mas se enganam, estamos tão preparados quanto qualquer outro criador. Como consequência vem a invalidação de nosso trabalho, por exemplo, quando produzimos conteúdos para a internet, é comum receber comentários racistas como: “Ué, mas se você fosse indígena mesmo não estaria nem aqui escrevendo na internet pelo celular!”.

Qual é a importância de ter representatividade no cinema, na literatura e em outras artes, para os povos indígenas, no seu ponto de vista?

É importante, é o direito de ser o protagonista de sua própria história e de sua arte. Nós, povos indígenas, somos artistas por natureza. Temos em nossa essência a arte de criar, dos cantos, da dança, dos ritos e dos contos. O meu povo depois de muita luta, resistência, e muito incentivo e motivação dos nossos anciões, temos grandes representantes como grandes artistas, cineastas, escritores, cantores e cientistas. Seguimos na luta para cada vez mais termos mais dos nossos nesses espaços de representatividade.

Uma das polêmicas mais recentes é sobre a série Cidade Invisível, quais são, na sua avaliação, os pontos problemáticos da produção? Como você se sentiu a respeito dessa obra?

Nem de longe fomos representados, pois eles retrataram vários elementos de nossa cultura, nossa espiritualidade e em nenhum momento retrataram a origem desses elementos. Como se retrata a cultura sagrada de um povo sem o protagonismo do povo? 

Eu assisti a série depois que vi comentários de outros parentes indígenas questionando a representação dos povos indígenas na série, aí eu resolvi assistir para expressar minha opinião. Foi difícil para mim assistir desde o início, porque eu não parava de me questionar em cada cena.

O sentimento ao assistir foi de invisibilidade. É como se eles retratassem as nossas entidades da forma que eles entenderam que era pra ser. Fiquei triste por ver que nosso saber passado de geração em geração através da oralidade foi deixado de lado. Faltou eles estudarem mais sobre as nossas tradições, entender o significado verdadeiro de cada coisa.

Esse tipo de conteúdo chega em que medida até às aldeias?

Na juventude chega em grande escala, principalmente. Hoje grande parte  do meu povo tem acesso a internet, mesmo que o uso básico. Apesar de o “boom” da internet aqui na aldeia ter sido relativamente recente, há uns 4 anos aproximadamente.

Uma série como essa ajuda a exportar uma imagem estereotipada dos povos indígenas? Quais podem ser as consequências? Ela pode trazer algo de bom para o debate também?

Sim. Todos nós sabemos que há no exterior uma visão deturpada sobre a cultura e história do Brasil, e muitos pensamentos ainda são frutos da colonização. É muito comum ver gringos falando que “no Brasil só tem índio (e no entendimento de indígena na visão da colonização, ou seja, ‘selvagens’)” ou “No Brasil tudo é samba e carnaval o ano inteiro”. 

Por isso a minha preocupação de uma grande produção como a série reforçar ainda mais estereótipos desta natureza. Reforçar a visão de uma “magia”, e não entender e perceber que estes seres são sagrados para os povos originários. A série vende a ideia de “mistério”, mas qual a origem desse mistério que eles retratam? Entende o quão sério é esse debate? 

Nosso sagrado não é entretenimento

Fabrício Titiah

A partir da série esperamos que todos  reflitam sobre como a cultura indígena deve ser valorizada e respeitada, e não inferiorizada e tratada como uma crendice. E também sobre o protagonismo dos povos indígenas. Se vai retratar algo sobre os povos indígenas, então os povos indígenas têm que falar, que orientar como serão retratados da forma mais respeitosa possível. 

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