Sem vacina, cadeias brasileiras viram “vetores de contaminação” da Covid-19
Especialistas afirmam que exclusão da população carcerária das fases iniciais de imunização é preocupante e configura risco epidemiológico
atualizado
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A escassez de doses de vacinas contra o novo coronavírus coloca em debate quais grupos de brasileiros devem ter prioridade na campanha de imunização da doença. Pressionado, o governo lançou o Plano Nacional de Imunização, que, incialmente, priorizava, além de pacientes de grupo de risco e integrantes da faixa de maior letalidade da infecção, públicos em situação de vulnerabilidade, como populações carcerárias.
Em um cenário de desabastecimento de doses, a inclusão de presos nas fases iniciais de vacinação para combater a Covid-19 no país não teve repercussão positiva. Após idas e vindas, o Ministério da Saúde optou pela exclusão da massa carcerária dos grupos prioritários que receberão o imunizante neste primeiro momento. No entanto, a pasta manteve a imunização entre os agentes penitenciários, e a previsão é de que os servidores sejam vacinados na 4ª fase da campanha.
Para especialistas ouvidos pelo Metrópoles, a decisão do governo federal em retirar de pauta a imunização de internos dos sistemas prisionais pode agravar ainda mais o quadro de disseminação da doença nos presídios brasileiros.
Atualmente, os sistemas prisional e socioeducativo do país computam 63.442 internos infectados e 229 mortos em decorrência do novo coronavírus. Do total, 43.799 pacientes da Covid-19 são presos e outros 13.665 são servidores. Só no sistema socioeducativo, 1.377 adolescentes foram contaminados, além de 4.611 trabalhadores, com 27 óbitos. Os números foram atualizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nessa quarta-feira (20/1).
“Vetor de contaminação”
Os dados referentes aos infectados pelo vírus nas cadeias brasileiras estão longe de representar a realidade, segundo o ex-diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) Renato De Vitto. Hoje atuando como defensor público pelo estado de São Paulo, o especialista assinala que é grande a subnotificação de casos da doença nos presídios nacionais – o que, para ele, é resultado de uma fraca política de testagem realizada pelas administrações regionais dos centros de detenção.
“Três quartos das unidades prisionais de São Paulo já foram contaminadas pela Covid-19. O fato é que esse número em São Paulo representa 11 mil infectados e, se comparado com a transmissibilidade entre a população geral, já é alto e deve ser muito maior considerada a baixa testagem, que só foi feita em 40 mil presos”, frisa.
O defensor público explica que, apesar do entendimento popular de que cadeias têm grande controle de pessoas, os centros de detenção, na verdade, apresentam expressiva movimentação diária de servidores, familiares e outros funcionários. “As pessoas imaginam cadeias como lugares inacessíveis, mas não é verdade. Você tem agentes penitenciários indo e vindo, familiares em visitas, presos que deixam as unidades para trabalhar, é um grande fluxo de pessoas.”
“Os presídios seguem sendo vetores de contaminação. O contingente de servidores que entram e saem é enorme, as visitas sociais estão sendo retomadas, e não estamos falando de um ambiente hermético. Manifesto muita preocupação com a questão da Covid-19 nos presídios, que vivem uma realidade de superlotação crônica inaceitável”, alerta.
A infectologista Ana Helena Germoglio, do Hospital Águas Claras, explica que a prisão resta como facilitadora para disseminação de doenças infectocontagiosas, uma vez que o ambiente fechado é propício para a transmissibilidade do vírus. Diante da impossibilidade de vacinar toda a população de imediato, a profissional de saúde entende como positiva a manutenção dos agentes penitenciários nas fases iniciais de imunização. Para a especialista, isso pode ajudar a reduzir as infecções nas cadeias.
“A mortalidade de presídios ainda é baixa. Não é que os presos não mereçam a vacina, todos merecem, mas o quantitativo de óbitos ainda é baixo e, por isso, precisamos priorizar determinados grupos. Os agentes penitenciários vacinados já são de grande ajuda, porque evita que a doença entre e saia do presídio em grande fluxo. Já que, neste cenário, a gente não consegue vacinar todos, a alternativa [de vacinar os servidores] ajudaria a evitar que a Covid-19 entre no presídio”, explica.
Dupla penalização
Secretária da Comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil seccional do Distrito Federal (OAB-DF), a advogada Luciana Munhoz pontua que atendimento médico de qualidade e eficaz aos internos do sistema prisional não é uma unanimidade no Brasil.
“O preso tem privada a sua liberdade, mas todos os outros direitos permanecem, incluindo o direito à saúde. Precisamos entender que o Estado tem responsabilidade para com esses presos, e o nosso sistema carcerário é marcado por profunda aglomeração, que torna quase impossível seguir as determinações sanitárias”, ressalta.
Para Luciana Munhoz, a exclusão dos presos das fases iniciais de imunização contra a Covid-19 acaba sendo uma “dupla penalização”.
“A decisão [do Ministério da Saúde] foi tomada com base na opinião pública, que tem uma perspectiva estigmatizante da população carcerária. Precisamos enxergar como foi construído o sistema penal no Brasil e não agir penalizando o preso como se não merecesse tomar essa vacina. Não podemos ter uma dupla penalização”, salienta.
Advogado e membro da Comissão Especial de Direito Penal da OAB de São Paulo, Felipe Chiavone Bueno também entende que a decisão foi tomada com base na opinião pública.
“Em que pese esta exclusão dos presos das fases iniciais de vacinação pelo Ministério da Saúde, ficou muito claro que a decisão parte de uma questão de opinião pública. Não é agradável para a população saber que presos serão vacinados antes, mas o ponto é que você tem, dentro dos presídios, um superencarceramento. Não é brincadeira [a situação do sistema prisional brasileiro], e a pena não pode passar da sentença imputada como sanção para o preso”, pontua.
Ausência do Estado
Bueno reforça que as unidades prisionais sofrem com as dificuldades em cumprir determinações recomendadas pelas autoridades sanitárias. “Falamos de um cenário em que há 20 pessoas, quando deveria ter oito. Não é como do lado de fora, que há distribuição de álcool em gel, máscara. Eu lamento essa decisão, porque mostra o desconhecimento do governo federal sobre a realidade dos presídios”, pondera o defensor.
A avaliação dos mencionados profissionais encontra amparo entre organizações não governamentais (ONGs) em defesa dos direitos humanos. Para o coordenador de Enfrentamento à Violência Institucional da ONG Conectas, Gabriel Sampaio, as secretarias de segurança pública não foram capazes de garantir o cumprimento de medidas preventivas para evitar a disseminação do vírus.
“Não se pode perder de vista algo que é fundamental: o Estado é responsável pela custódia das pessoas presas. Não só delas, mas de seus trabalhadores, dos profissionais de saúde que prestam atenção a esse público e de seus familiares. A decisão do Ministério da Saúde coloca em risco epidemiológico toda a comunidade”, frisa.
Sampaio fala em “déficit de atuação” do governo a respeito do tema. “É muito importante que o governo seja responsabilizado pelo déficit de atuação e pelas violações que foram praticadas no ambiente prisional durante a pandemia e diante do agravamento do risco epidemiológico de pessoas presas. É uma conduta que vai merecer todo tipo de cobrança da sociedade civil deste momento”, finaliza.