Sem oxigênio e sem leitos de UTI, cidade no Amazonas corre contra o tempo para evitar tragédia
Picapes reduzem trajeto de quatro horas pela metade para buscar oxigênio em Manaus e levar a Itacoatiara antes que cilindros acabem
atualizado
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Enviados especiais a Itacoatiara (AM) — Sentada ao lado do Hospital Regional José Mendes (HRJM), em Itacoatiara (AM), uma servidora da Defesa Civil da cidade pergunta sobre a quantidade de oxigênio restante. “O de baixo está quase zerando”, responde um funcionário da unidade de saúde, ao analisar a válvula reguladora da bala (cilindro).
Restavam apenas 19 cilindros, com capacidade de 10 litros de oxigênio cada. O gás era suficiente para abastecer o hospital por apenas mais duas horas. Dentro da unidade de saúde, no entanto, 96 pacientes em estado grave, infectados pelo novo coronavírus, estavam internados, logo no início da tarde desse domingo (17/1).
O oxigênio é indispensável no tratamento da doença, que provoca, entre outros sintomas, severa falta de ar. Na tarde de domingo, familiares, amigos e médicos aguardavam apreensivos a chegada de três picapes, de Manaus (AM), para reabastecer o oxigênio. “Se não chegarem até as 16h, esses 96 pacientes provavelmente vão morrer”, disse o secretário de Comunicação da Prefeitura de Itacoatiara, Luiz Brasil.
No interior do Amazonas, a 269 km de Manaus, um trajeto que costuma ser feito em cerca de 4h de carro, Itacoatiara vive uma situação dramática, com o aumento de internações em decorrência da Covid-19 e a potencial falta de oxigênio na cidade. A realidade, acompanhada de perto pelo Metrópoles, chega a ser até mais dramática em relação à capital, que começou a receber o gás de várias fontes – de artistas a cidadãos comovidos pelo Brasil, e até do governo da Venezuela – neste fim de semana.
Na última segunda-feira (11/1), a cidade do interior, quase invisível diante da dimensão da crise na capital amazonense, já havia registrado 103 óbitos decorrentes de Covid-19, além de 3.090 casos da doença. Além disso, 54 pacientes estavam internados. Menos de uma semana depois, ou seja, até a noite de sábado (16/1), mais 306 infecções foram confirmadas, 12 pessoas morreram e mais 33 leitos para Covid-19 passaram a ser ocupados.
Itacoatiara parece esquecida no interior do Amazonas. O Ministério Público estadual (MPAM), inclusive, entrou com ação civil pública, no sábado (16/1), para obrigar o governo do estado a enviar oxigênio ao município. A Justiça acatou o pedido, e 80 cilindros foram enviados – que duraram apenas até a tarde de domingo.
O MPAM disse que o secretário de Interior da Secretaria de Saúde do Amazonas (Susam), Cássio Espírito Santo, chegou a oferecer câmaras frigoríficas ao prefeito da cidade, Mario Jorge Abrahim, para acondicionar corpos de vítimas, e a orientar a abrir valas no cemitério local.
A prefeitura tem realizado uma corrida contra o tempo, mas que parece não ter linha de chegada. Os carros saem da cidade em velocidade muito acima da permitida para reabastecer os cilindros de oxigênio em Manaus. Após uma longa fila de espera, retornam para o interior do estado, onde deixam as balas.
Esse processo, feito a 180 quilômetros por hora, segundo relatos de motoristas ouvidos pelo Metrópoles, se repete ininterruptamente, desde ao menos quarta-feira (13/1), quando a empresa White Martins deixou de reabastecer um tanque de 350 litros do hospital, que, mesmo sem unidade de terapia intensiva (UTI), segue como o único da cidade e de ao menos outros cinco munícipios vizinhos.
“Olha, chegou o carro”, grita euforicamente a servidora da Defesa Civil Ana Lúcia, ao avistar uma picape dobrando a esquina. “Não, essa é a dos insumos”, afirma um funcionário do hospital, às 15h05 – cerca de 55 minutos antes da previsão para os níveis de oxigênio chegarem ao fim.
“Olhamos, e falta menos de uma hora”, diz o servidor, com a perna cruzada, ao bater o pé direito no chão, claramente impaciente. “Mas vai dar tempo [de as picapes chegarem]”, complementa, em uma tentativa de jogar ao menos um pingo de esperança em um mar de ansiedade.
Enquanto isso, os corpos de mais duas pessoas com Covid-19 que estavam internadas são levados ao necrotério, que fica na parte de trás da unidade de saúde, após não resistirem a complicações da doença. As ruas que circundam o hospital começam a se encher de motocicletas e familiares das vítimas e de pacientes que tiveram piora.
O frentista Eliseu Luz, de 42 anos, perdeu um colega de trabalho na tarde desse domingo para o novo coronavírus. A vítima foi hospitalizada no sábado e morreu menos de 24 horas depois. “Trabalhava como segurança. Teve sintomas e infelizmente não conseguiu reagir”, relata.
Eliseu também estava na unidade de saúde porque a sogra, Valdomira Barreto, de 78, e o sogro, o sargento Aldo, de 72, foram internados há quatro dias por causa da Covid-19. “A situação está bastante precária. Acabei de receber a informação de que o meu sogro terminou sofrendo uma infecção pulmonar”, comenta.
“O meu medo é o medo de todos, é de que aconteça algo e a gente não consiga conduzir esse oxigênio até Itacoatiara”, pontua o frentista.
São 16h. O clima por causa dos cilindros de oxigênio vazios segue tenso, carregado. Apenas cinco, os últimos dos 19 que restavam no início da tarde, abastecem a unidade de saúde. O gás, porém, vai durar mais alguns minutos além da previsão inicial, uma vez que os médicos reduzem a saída do oxigênio quando o insumo está perto do fim, o que pode prejudicar pacientes, sobretudo aqueles em estado grave.
Cerca de 15 minutos depois, o prefeito Mário Abrahim volta ao hospital, onde passou boa parte do tempo no domingo. Começa uma força-tarefa para receber os cilindros de oxigênio que devem chegar em pouco tempo a Itacoatiara.
O chefe do Executivo municipal chega a gritar com uma viatura da polícia para sair da rua em que a picape vai passar.
Finalmente, às 16h27, uma Amarok de cor cinza escuro, com uma sirene no teto, dobra a esquina em alta velocidade, derrapa e estaciona de ré próximo aos cilindros vazios do hospital. Uma multidão vibra e celebra a chegada dos 10 cilindros de oxigênio.
Funcionários e voluntários, então, ajudam a realizar o reabastecimento. Quatro duplas correm com quatro balas sobre os ombros para dentro do hospital, enquanto o restante do material é alocado para guarnecer o resto da rede de saúde.
“Foi uma hora e 40 minutos”, conta o motorista da picape cinza escuro, Fabrício Oliveira, de 32, sobre o trajeto de Manaus a Itacoatiara, que dura, normalmente, cerca de quatros horas.
“Isso é rotineiro. Saí daqui de Itacoatiara às 11h30. Daqui a pouco vou ter que ir a Manaus novamente”, prossegue o homem, que está sem ver a família há cerca de uma semana, quando começou a faltar oxigênio no tanque do hospital. “Eu estou lutando pela vida dos outros. Não me sinto como um super-herói. É dever do ser humano ajudar”, frisa.
Outras duas picapes, com 20 cilindros no total, chegaram ao hospital até o fim da tarde de domingo. A equipe de saúde aguardava outros 20. Com as novas balas, os médicos tinham pelo menos até a noite para realizar o tratamento.
“Esses 50 cilindros dão para mais seis horas para frente. Temos 96 pacientes internados. Mas estamos aguardando abastecimento de 140 balas pelo governo federal”, explica a secretária de Saúde de Itacoatiara, a médica Rogéria Lima, com a voz embargada.
Durante toda essa luta, 10 pacientes morreram no Hospital Regional José Mendes (HRJM) ao longo do domingo. Desses, nove tinham sintomas da Covid-19. Segundo a secretária de Saúde, as vítimas que evoluíram a óbito estavam em estado grave.
“Todos os pacientes ficaram com oxigênio, mas com uma quantidade reduzida. Os pacientes de Covid em estado grave deveriam estar em UTIs, mas não temos mais vagas em UTI no Amazonas. E aí a gente fica dependendo de Manaus para mandar o paciente”, desabafa a secretária.
O desespero em Itacoatiara, afirma Rogéria, provavelmente vai se repetir nos próximos dias. Enquanto isso, resta torcer para que a corrida contra o tempo seja vencida a cada dia.