Romeiros superam 18 km para chegar a local de festa cancelada por pandemia
Festa do Divino Pai Eterno deixou de ser realizada pelo segundo ano consecutivo devido à pandemia; prefeitura organizou romaria virtual
atualizado
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Goiânia – Sem Festa do Divino Pai Eterno pelo segundo ano consecutivo, por causa da pandemia da Covid-19, a cidade de Trindade, a capital da fé em Goiás, vive um início de julho oposto ao que estava habituada até 2019, quando 3 milhões de fiéis passavam pelo município nos dias de festividade. Com igrejas fechadas, barreiras sanitárias e hotéis proibidos de funcionar, o fluxo de devotos reduziu drasticamente este ano.
No entanto, ainda há romeiros resistentes, movidos pela tradição e fé, que são vistos em peregrinação no trecho da rodovia que dá acesso à cidade. O percurso que sai de Goiânia, pela GO-060, tem 18 quilômetros e é conhecido como Rodovia dos Romeiros. Esses fiéis fazem questão de caminhar até Trindade, em sinal de agradecimento ou pagamento de alguma promessa, e fazem isso, em alguns casos, há décadas.
A ausência da festa é sentida, mas, para eles, a devoção ao Pai Eterno e a fé religiosa são mais importantes. A festa cresceu liderada pelo padre celebridade, Robson de Oliveira, recentemente envolvido em escândalo de suposto desvio do dinheiro doado por fiéis, e tornou-se um dos maiores eventos religiosos do Brasil. Missionário redentorista, ele foi afastado e cumpre regras de decreto canônico até o trânsito em julgado do processo.
No ano passado, padre Robson chegou a pleitear a realização de uma carreata para não deixar a data da festa passar em branco, já que a pandemia inviabilizou o evento. Por recomendação do Ministério Público de Goiás (MP-GO), a administração do Santuário Basílica do Divino Pai Eterno decidiu um dia antes não colocar o plano em prática. Desde então, a pergunta sobre como será a primeira festa do Divino sem a presença do padre paira sobre a cidade.
Este ano, a prefeitura tomou frente da organização e estabeleceu medidas para evitar a concentração de pessoas e, ao mesmo tempo, incentivar que todos acompanhem de casa a programação de uma romaria virtual. No primeiro fim de semana de festa, no final de junho, em 2019, 675 mil romeiros passaram por Trindade. Este ano, no mesmo período, de 25 de junho a 27 de julho, foram apenas 947.
Devoção acima de tudo
De certa forma, o objetivo da administração local foi atingido, mas chama a atenção o simbolismo da necessidade da caminhada e da devoção para esses fiéis que ainda vão a Trindade, mesmo com as igrejas fechadas. A reportagem do Metrópoles esteve na cidade, percorreu o trecho da Rodovia dos Romeiros, saindo de Goiânia, nessa sexta-feira (2/7), e encontrou alguns poucos devotos caminhando, apesar do sol.
O primeiro deles foi o comerciante Fábio Araújo, 35 anos, morador de Goiânia, do Setor Centro-Oeste. “Eu não paro, não. Vamos juntos”, disse ele à reportagem, para o caso de entrevista. Há nove anos, Fábio mantém o costume da caminhada até Trindade, no período de festa. Assim como no ano passado, independentemente da realização ou não do evento, ele fez questão de percorrer a pé os 18 km.
“Sobre a festa, eu não me importo tanto, mais é pela caminhada da fé mesmo. A gente vir todo ano é que é importante. É um ritual que dá força para a gente, aumenta cada vez mais a nossa fé, renova as forças e, para mim, isso é muito importante. É uma coisa sobrenatural. Às vezes, a gente passa por algum aperto e aí logo se apega com o Divino Pai Eterno e ele dá o livramento. Só tenho a agradecer”, diz ele.
A entrada na cidade não está proibida. A barreira sanitária no trevo serve como parada para orientações e avisos. Muitos fiéis, por exemplo, chegam sem saber que as igrejas estão fechadas. Alguns, segundo os trabalhadores que atuam no local, se surpreendem e até se revoltam com a informação. Já sabendo disso, Fábio planejou a caminhada somente até a entrada de Trindade e, em seguida, voltou para Goiânia.
“Enquanto tiver vida e saúde, vou caminhar”
Alguns quilômetros à frente dele estava o casal de professores Ivana Ramos, 47, e Ronan Borges, 48. Os dois se mudaram para Goiânia há 12 anos e são devotos do Pai Eterno, desde que moravam em Minas Gerais e acompanhavam pela TV as transmissões das missas. “Estamos fazendo essa caminhada quase que sozinhos aqui, mas a fé é a mesma. Enquanto eu tiver vida e saúde, vou caminhar para agradecer”, expressa Ivana.
Diferentemente de Fábio, ela diz sentir falta da festa e do movimento de romeiros caminhando juntos até Trindade. “Fico pensando nas pessoas que vinham de várias partes do Brasil, com carros de boi, pagando promessas de gerações. A gente fica imaginando como essas pessoas devem se sentir, porque nós ainda estamos perto e damos um jeitinho. Esses fiéis de longe devem estar sofrendo mais”, acredita ela.
Ascensão e queda
A ascensão da festa e a fama em torno da figura de padre Robson levaram o símbolo do Pai Eterno para todo o País. A Associação Filhos do Pai Eterno (Afipe), por exemplo, criada por ele para gerenciar o dinheiro doado por fiéis e realizar os trabalhos evangelizadores, chegou a receber até R$ 20 milhões por mês em doações, segundo levantamento do MP-GO. Com o escândalo, no ano passado, houve queda brusca de 80% da arrecadação e, em março deste ano, reduziu para 50%.
O impacto foi imediato e houve uma tentativa de dissociar a imagem do padre não só da Afipe, mas também da representatividade do Pai Eterno. A maioria dos fiéis que seguem indo a Trindade diz que vai pela devoção e não pelo padre. A cidade, no entanto, cuja economia gira em torno do turismo religioso, vive uma incógnita sobre o futuro, caso o contexto de redução sentido na arrecadação da igreja se reflita no volume de fiéis que voltará a visitar o local quando a pandemia acabar.
Cavalgada de nove dias até Trindade
Parte representativa da tradição da festa, no entanto, mostrou-se viva para a reportagem do Metrópoles. Uma comitiva de 11 cavaleiros, ou melhor, “muladeiros”, já que estavam montados em mulas, saiu de Iporá (GO) e percorreu um trajeto de 315 km em estradas rurais por nove dias, até chegar à Basílica do Divino Pai Eterno. Eles estavam reunidos em frente à igreja, numa roda de oração e agradecimento.
Grupos do tipo, inclusive em carros de boi, são comuns durante a festa e ajudaram, ao longo do tempo, a promover a tradição do Pai Eterno. Uma das proibições impostas pela administração local este ano foi a de circulação e entrada na cidade de comitivas de tropeiros. No entanto, o grupo de Iporá, chamado Tropeiros do Divino Pai Eterno e que há 15 anos faz a cavalgada até Trindade, conseguiu se aproximar da basílica e ter o momento de fé, antes de dar meia volta e retornar para casa.
“Que o Divino Pai Eterno e Deus ajudem que isso (pandemia) acabe logo para que a gente possa vivenciar a fé e a união presencial, novamente, e não on-line, igual está sendo proposto. Viemos no ano passado da mesma forma. É a fé que nos motiva; a fé e agradecer por mais uma vez estarmos juntos e com saúde. Essa é uma tradição que passa de pai para filho. Já vieram três gerações diferentes: pais, filhos e netos”, conta o representante do grupo, o cirurgião dentista e pecuarista, Juliano Henrique Rocha.