Projeto do DF é pioneiro no uso de plantas medicinais na saúde pública
Há quase 30 anos o Farmácia Viva distribui medicamentos fitoterápicos à população. Iniciativa é uma forma de preservar o saber popular
atualizado
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Os fundos da chácara que abriga o Instituto de Saúde Mental (ISM) do Distrito Federal, no Riacho Fundo I, guarda um tesouro. Na verdade, sete. O terreno, a cerca de 30 minutos do Plano Piloto, é a casa de plantas de diferentes cores e tons de verde, frutos e folhas de tamanhos variados que viram remédios em forma de chá, extrato alcoólico, pomada ou gel e são distribuídos gratuitamente para a população. É o encontro da natureza com os saberes popular e científico. Ali, o discurso sobre as condições precárias do já sucateado sistema de saúde pública, pelo menos em alguns metros quadrados, se descola da realidade.
Quando o farmacêutico Nilton Luz Netto Júnior passeia pelo local, explica com amor de pai o projeto Farmácia Viva, onde está há 25 anos e sobre o qual hoje responde como chefe. Fala com intimidade das espécies ali cultivadas e do valor de cada uma delas para combater males como infecções respiratórias, dores musculares, doenças de pele e ansiedade. Atualmente, sete plantas dividem espaço no horto instalado no ISM, além de plantações parceiras na Papuda e no Centro Nacional de Recursos Genéticos, na Embrapa.Os benefícios do guaco, boldo, alecrim-pimenta, funcho, aloe vera, confrei e da erva-baleeira são estudados à exaustão, extraídos artesanalmente através de tecnologia simples, mas eficaz, e distribuídos a pacientes em 22 unidades de saúde espalhadas pelo DF.
Medicina do povo para o povo
“Para algumas doenças, sequer há outra alternativa na rede pública que não os medicamentos naturais”, comenta o farmacêutico. Para micose e frieira, por exemplo, diagnósticos que infestam os postos de saúde na época de chuvas abundantes, a única alternativa gratuita é levar para casa um pote de gel de alecrim-pimenta.
Se o problema for dor muscular, o gel de erva-baleeira é um poderoso anti-inflamatório de uso tópico. “Penetra nas camadas mais profundas da pele e alivia as dores. Usamos ele no Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] aqui no DF. E não para os pacientes, mas sim para os funcionários”, comenta Netto Júnior.
O uso da chamada medicina tradicional na rede pública, com uso de plantas medicinais, não é exatamente novidade no Brasil. O projeto de Brasília, no entanto, tem status especial: aos 28 anos de idade, é um dos pioneiros do país. Em terra de seca, fez brotar plantas raras.
O próprio alecrim-pimenta, arbusto silvestre original do nordeste brasileiro, foi trazido por um dos maiores nomes da pesquisa em fitoterápicos do país, o farmacêutico e ex-professor da Universidade Federal do Ceará Francisco José de Abreu Matos. “Ele dizia que se a mulher dele tivesse que ter ciúmes, seria dessa planta”, brinca o responsável pelo Farmácia Viva.
Os achados e as pesquisas de Matos foram incorporados pelo Ministério da Saúde na criação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, em 2006, quando a coisa aqui em Brasília já andava há mais de 15 anos. Foi o cearense quem fez dos quintais do planalto a extensão do projeto que criou em sua terra natal: “a planta do povo para o povo”, ele dizia.
A fitoterapia é o encontro do conhecimento científico, do povo e da planta. Quando a ciência se apropria disso, a população, que já usava essas plantas antes da medicina, ganha em saber se aquilo realmente funciona e a melhor forma de usar
Nilton Netto Júnior, chefe do projeto Farmácia Viva do DF
Pesquisa intensa
As sete espécies que brotam hoje no DF rendem nove tipos diferentes de medicamentos. Todos eles feitos artesanalmente em laboratórios de tecnologia simples, mas eficaz, instalados ali mesmo no ISM. A estufa onde as folhas são ressecadas antes de virarem pó ou chá, por exemplo, é uma “invenção” da equipe de Nilton Luz Netto Júnior: lâmpadas incandescentes, telas e um exaustor dão conta do trabalho.
Em contrapartida, um equipamento avaliado em R$ 150 mil e adquirido pelo governo local, xodó do farmacêutico, garante a pureza absoluta da água que compõe os frascos e potes, evitando contaminações. Nas unidades de saúde, a produção do Farmácia Viva só é distribuída com prescrição de um profissional de saúde – médicos, enfermeiros ou farmacêuticos estão aptos a fazer as recomendações.
Nenhuma fórmula ou princípio ativo é dado a pacientes ao léu: tudo é submetido a extensas pesquisas e análises e segue o Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicação que em muito baseou suas “receitas” no trabalho desenvolvido pela equipe de Netto Júnior no Riacho Fundo. Além das sete plantas, mudas de romã e de colônia crescem há sete anos no horto do Farmácia Viva. Elas devem virar fitoterápicos futuramente, mas só quando seus benefícios e segurança no uso forem comprovados.
“Plantas têm princípios ativos, substâncias”, comenta Nilton. “Elas são validadas como medicamentos quando se comprova que seus benefícios são maiores do que os seus riscos. Há, por exemplo, espécies que são tóxicas quando ingeridas, mas na forma de gel para uso tópico têm grandes benefícios ”, explica o farmacêutico. Educar a população para o uso correto das plantas medicinais, mesmo em casa, na forma de chás e preparados, também faz parte das ações do projeto, que espalha panfletos e cartazes pelos centros de saúde.
Economia e cultura popular
Segundo o responsável pelo Farmácia Viva, embora seja um assunto pouco abordado nas universidades, os fitoterápicos não encontram resistência entre médicos e pacientes do Distrito Federal. Dos últimos porque, de alguma forma, sempre foram utilizados. Dos primeiros, porque, como pioneiro no Brasil, o projeto ganhou força entre os profissionais da área. “Algumas plantas aqui têm quase 30 anos de uso ininterrupto. O segredo está na continuidade. Se tivéssemos parado e retomado depois, teríamos que criar a base toda do início”, explica Netto Júnior.
Vez ou outra, o farmacêutico recebe no seu “escritório” – o terreno do horto – médicos, estudantes e profissionais de outras secretarias estaduais de saúde em busca de conhecimento. Visitantes que querem entender mais sobre o projeto, a rotina e os benefícios das plantas. Tudo espontaneamente. “Muitos estão passando de carro aqui e param para conhecer”, conta.
Em Fortaleza, onde o projeto nasceu, quem comanda o Farmácias Vivas (no plural mesmo) do estado é a professora Mary Anne Bandeira, professora da Universidade Federal do Ceará. Quando Francisco Matos morreu, em 2008, foi ela quem deu continuidade ao trabalho pioneiro do farmacêutico. Hoje, por lá, são 132 plantas indexadas, 30 delas usadas na fabricação de fitoterápicos.
A planta é um elo de ligação importante entre o profissional de saúde e a comunidade. Quando você receita um fitoterápico, ensina também sobre respeito à cultura, higiene, direitos do paciente… Está tudo interligado. É preciso observar o indivíduo de forma holística, dentro de um contexto também social, cultural e econômico
Mary Anne Bandeira, professora da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do projeto Farmácias Vivas do estado
Ainda segundo Mary Anne, estudos dão conta de que a incorporação dos remédios naturais na saúde pública pode representar uma contenção de despesas de até 200%. “Temos aqui um xarope broncodilatador superpotente que, levados em conta todos os gastos com embalagem, pesquisa e pessoal, sai a R$ 1,80 o frasco. Procure ver o preço cobrado por um remédio similar em uma drogaria”, sugere.
Segundo a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, só no primeiro trimestre de 2017, o Farmácia Viva fabricou 4.366 medicamentos extraídos de plantas. No ano passado, foram mais de 25 mil ao todo.
Em todo o país, de acordo com dados do Ministério da Saúde, a procura por medicamentos naturais no Sistema Único de Saúde (SUS) aumentou 161% entre 2013 e 2015. O Programa de Plantas Medicinais e Fitoterápicos da pasta está presente hoje em 3.250 unidades de saúde, em 970 municípios brasileiros. O governo federal afirma que, desde 2012, foram investidos mais de R$ 30 milhões em projetos de plantas medicinais na saúde pública nacional.
Saber dos índios
Preservar a cultura da medicina vinda das plantas não é exclusividade de academias e projetos governamentais. Passa também por guardar a sete chaves os saberes das tribos indígenas, essas sim especialistas no poder de cura da natureza.
Com medo de que a vida moderna e a indústria farmacêutica engolisse os saberes ancestrais dos índios, uma ONG norte-americana dedicada à causa indígena, a Acaté, decidiu ajudar xamãs do povo Matsés – divididos entre o Peru e o Brasil, na Região Amazônica – a perpetuarem suas fórmulas e conhecimento. Os textos, escritos pelos curandeiros na sua língua nativa, estão sendo reunidos desde 2015 em um livro chamado de Enciclopédia de Medicina Tradicional Matsés.
É a primeira vez que xamãs de uma tribo da Amazônia reúnem suas receitas em sua língua e seus códigos. A ideia, segundo a Acaté, é que o documento sirva a futuras gerações para que preservem a cultura do seu povo.
“Com o conhecimento de plantas medicinais desaparecendo rapidamente entre a maioria dos grupos indígenas e ninguém para escrevê-los, os verdadeiros perdedores no final são, tragicamente, os próprios atores indígenas”, disse ao site Mongabay, à época do lançamento da enciclopédia, o médico Christopher Herndon, fundador da ONG. “A metodologia desenvolvida pelos Matsés e pela Acaté pode ser um modelo para outras culturas indígenas protegerem seus conhecimentos ancestrais”, ressaltou.