Metade das mortes por câncer de mama poderia ser evitada, diz estudo
O uso dos medicamentos trastuzumab e pertuzumab dobraria a quantidade de vidas salvas. Médicos lutam para que a rede pública ofereça essas terapias
atualizado
Compartilhar notícia
No Outubro Rosa, quando o mundo faz campanha sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama, um estudo publicado no Journal of Global Oncology mostra falhas no tratamento para a variedade HER2 da doença. Milhares de vidas poderiam ser salvas, mas não são graças à recusa do poder público em usar medicamentos mais modernos nos tratamentos.
A pesquisa conduzida por oncologistas brasileiros de diversas instituições, incluindo especialistas da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, conseguiu dimensionar a quantidade de mortes ocorridas em pacientes com câncer de mama HER2 tratadas na rede pública de saúde (SUS), por falta de acesso às terapias mais avançadas para esse tipo da doença.Os remédios em questão são: o trastuzumab, aprovado pela Anvisa para comercialização no Brasil desde 1999 e que consta na lista da Organização Mundial de Saúde (OMS) de medicamentos essenciais para o câncer; e o pertuzumab, aprovado pela Anvisa desde 2013.
Entretanto, no SUS, pacientes em estágio inicial de câncer de mama HER2 só passaram a ter acesso ao trastuzumab nos últimos três anos, e as pacientes em estágio avançado da doença estão privadas deste medicamento e de qualquer outra terapia anti HER2, apesar de os benefícios deles terem sido demonstrados por diversos estudos clínicos. Já o pertuzumab está indisponível no SUS para qualquer situação.
Falta de remédio para pobre, notícia de que pobre está morrendo tem todo dia, não chama muita atenção. No convênio particular não falta o remédio
Gustavo Fernandes, oncologista
Conversamos com o Dr. Gustavo Fernandes, presidente da SBOC, sobre a pesquisa.
Qual é a justificativa do governo para não fornecer o remédio?
Uma das medicações – o pertuzumab – nunca foi submetida à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec). O trastuzumab está na cesta básica da Organização Mundial de Saúde (OMS), ou seja, a droga é indispensável mesmo em países de baixa renda, onde é obrigatória.
Medicamentos que controlam a dor (morfina e outros) estão entre as coisas que são consideradas básicas. E existe essa opção que ajuda a tratar 20% dos cânceres de mama. Como desagrada ao governo, mesmo estando há 18 anos no Brasil, ainda continua muito cara.
O laboratório baixou o preço e o governo compra para tratamento complementar, mas é possível baixar ainda mais esse valor. Primeiramente, para diminuir esse preço, o governo precisa dizer que quer comprar e a sociedade médica, então, pressionar a industria farmacêutica.
Agora, quando o governo fala que não sabe se a medicação funciona, que está avaliando os benefícios, sendo que médicos importantes e a própria OMS já alegaram que funciona, aí complica. Eles precisam falar que querem comprar, mas não têm dinheiro, para todo mundo mover os holofotes e fazer pressão na indústria.
O custo social para a industria farmacêutica pesaria, pois ficaria com uma imagem ruim perante a sociedade. O primeiro passo é o governo manifestar interesse em ter medicamentos mais novos e mais modernos incorporados ao SUS.
Quando falamos em “falta de dinheiro do SUS” para as medicações, estamos falando que essas medicações são muitas caras?
Uma ampola de trastuzumabe custa cerca de R$ 3 mil, mas seu uso não é só para um paciente. Uma ampola pode atender até três pacientes. Não sou a favor da ideia de que o SUS pode dar tudo pra todo mundo, não pode. 18% do PIB dos EUA são investidos em saúde. No Brasil, apenas 8% ou 9%. E nos EUA os pacientes ainda reclamam que falta muita coisa.
Se o SUS dissesse ‘a gente não compra porque é muito caro’, fizesse uma análise e explicasse que é impossível o gasto, então todo mundo se juntaria para baixar o preço, alguém poderia doar uma parte do dinheiro.
A sociedade médica, os pacientes, fariam pressão no Ministério do Planejamento. Todo mundo entenderia, as pessoas entendem de economia. Agora, é preciso apontar pontos reais da situação e não se esconder atrás de análises técnicas que dizem que os medicamentos não funcionam. O Ministério da Saúde estabeleceria regras transparentes de quais são os pontos que precisam ser pressionados.
O que a classe médica pode fazer junto ao Ministério da Saúde para agilizar o uso desses medicamentos?
Como sociedade médica vamos protocolar a nossa análise, os argumentos técnicos e entregar este mês ainda à Conitec, que é o órgão responsável pela incorporação de novas tecnologias no Ministério da Saúde.
Vamos tentar uma audiência e eles devem nos receber para conversar. Se o sistema público deixar, claro que o problema é o valor dos medicamentos, conversamos também com a indústria farmacêutica para mostrar que o preço não é bom para o Ministério da Saúde e tentamos baixar os valores. Queremos, como sociedade médica, ser mais parceiros do Ministério da Saúde para facilitar o acesso da sociedade ao tratamento certo de saúde, oferecer o ideal para todo mundo.
Antes do estudo, esse não era um assunto muito comentado. Acredita que tenha algum motivo específico?
Quem utiliza o SUS, geralmente, são as pessoas mais pobres, que não têm muito acesso à mídia, à informação. Quem tem acesso é quem lê jornal, quem paga convênio.
É um jogo de exclusão, que exclui a parte mais pobre. 25% das mulheres que têm convênio estão tendo acesso a essa droga há 18 anos. Isso resolve parte do problema que é mais ativo, que tem acesso à justiça. Falta de remédio para pobre, notícia de que pobre está morrendo tem todo dia, não chama muita atenção. Cerca de 40 indicações faltam no SUS e não estão faltando no convênio
As mulheres com esse tipo de câncer que se tratam no SUS ficam sabendo da existência desses dois medicamentos que melhorariam o quadro da doença?
Não, muito difícil. As pessoas que moram no interior do Piauí não saberiam, lá não tem nem radioterapia, a biópsia demora três anos para sair. Mais de 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS e muitas pessoas também recebem cuidados pela rede pública.
O SUS conta com sete bilhões de processos em aberto hoje, mas as coisas essenciais não podem faltar. Queremos ser parceiros. A ideia é ajudar para que o medicamento seja oferecido de maneira mais democrática.
Como é a utilização dessas medicações no restante do mundo?
Em todo lugar a eficácia dos medicamentos é provada. No EUA, Japão, Canadá e Europa esses medicamentos são oferecidos para as pacientes com câncer de mama metástico anti HER2 positivo. E não precisamos ir muito longe também. Os países da América Latina, menos o Brasil, oferecem.
O estudo pretende se aprofundar em outros medicamentos ou outros tipos de câncer?
A gente não direcionou a pesquisa aos medicamentos, mas no subtipo de câncer de mama. Para outros subtipos, onde a quimioterapia e a hormonoterapia são indicadas, o SUS não tem grandes problemas e consegue atender de maneira bem razoável. Pra esses tipos de câncer o tratamento continua sendo do mesmo jeito há 20 anos, mas atende.