Médicos de alma. Medicina paliativa é resposta para doenças sem cura
Confundida com “eutanásia” e alvo de preconceito de médicos e pacientes, a medicina paliativa é fundamental para um fim de vida confortável
atualizado
Compartilhar notícia
Quando se formou em medicina, há 15 anos, Érika Oliveira nunca tinha ouvido falar em cuidados paliativos. Na faculdade, aprendeu a reconhecer células e tecidos, a diferenciar órgãos saudáveis dos doentes. Ela, no entanto, não queria estar em um consultório para cuidar especificamente de coração, olhos ou pulmões.
No “catálogo” de opções que a formação tradicional oferece, Érika foi parar na clínica médica. Achava que a especialidade generalista daria sentido à sua vida profissional. Era, na verdade, só a porta de entrada a um mundo muito maior – e mais humano – da medicina.“Eu queria o contato com o paciente, uma coisa que fosse o mais geral possível”, conta. Durante a formação, encontrava muitas vezes pacientes terminais isolados ou excluídos do contato com a família, sem ter seus sintomas bem tratados. Ela foi buscar nos livros um alívio para seus pacientes, algo além dos fármacos e dosagens. Sozinha, mergulhada nos estudos, topou com a medicina paliativa.
A medicina paliativa é a reinvenção ou o resgate da medicina tradicional. Mais do que exames, tubos de ventilação mecânica ou leitos frios de uma UTI, ela abraça o paciente. Frequentemente – mas não necessariamente – o pega pela mão até os seus últimos dias de vida. Talvez por isso ainda tenha ares de tabu tanto entre pacientes quanto para médicos.
Não é disciplina obrigatória nas faculdades e tampouco é considerada uma especialidade, como a oftalmologia ou a cardiologia. Tanto que é mão de obra rara nos consultórios médicos. Não existem dados oficiais, mas a estimativa é que o número de paliativistas no Brasil não bata sequer na casa dos milhares.
A estatística ganha contornos ainda piores quando se fala em “qualidade de morte”. Em 2010, um ranking da revista “Economist” sobre o tema colocou o Brasil na antepenúltima colocação entre 40 países, na frente apenas de Uganda e da Índia. Em 2015, quando o ranking foi atualizado com uma mudança de metodologia, o Brasil ficou na 42ª posição entre 80 países, ainda atrás da maioria dos vizinhos latinos.
Países com melhor qualidade de morte, segundo o relatório divulgado com a lista, compartilham características como uma política nacional de cuidados paliativos, altos gastos públicos com serviços de saúde, grande oferta de medicamentos para controle da dor e forte consciência pública sobre cuidados paliativos.
O tabu maior, os especialistas acreditam, talvez venha justamente da intimidade que a área tem com a morte, algo que a medicina luta o tempo todo para vencer ou adiar. Ou ainda da confusão que existe aqui e acolá de medicina paliativa com eutanásia – prática definida por antecipar a morte natural do paciente para findar o sofrimento e que é crime no Brasil.
Para a medicina paliativa, a dignidade humana se preserva na linha do meio: nem antecipar e nem adiar o fim a todo custo. Morrer deve acontecer no tempo certo. Com conforto e livre de dores, de preferência.
“A morte faz parte do ciclo da vida. E a gente precisa começar a falar disso”, afirma Érika Oliveira. O Hospital de Apoio hoje tem 29 leitos paliativos, sendo 19 na área de oncologia e 10 na geriatria, todos ocupados.
A estatística triste é que 80% dos pacientes acabam mesmo se despedindo da vida. A feliz é que a maioria deles parte sem dores ou tubos, acolhidos física e espiritualmente. “Muitas vezes, quando eles chegam aqui, não há mais tratamento para a doença. Mas dizemos que para o doente, sim. Esse tratamento inclui sim a parte técnica, do controle da dor, por exemplo, mas o acolhimento é também espiritual, psicológico e familiar”, comenta Érika.
A morte é nossa matéria-prima. Mas aqui priorizamos a vida. É sobre acrescentar mais vida aos dias. E não mais dias à vida.
Érika Oliveira, chefe do serviço de cuidados paliativos do Hospital de Apoio do DF
Cura da alma
Na medicina paliativa o conceito de cura se expande. “Nem sempre ela é física. É muito comum aqui vermos casamentos acontecendo, reencontros, momentos em família”, comenta a médica do Hospital de Apoio. Tanto que o trabalho é feito em equipe: médico, enfermeiro, nutricionista, odontologista, psicólogo, fisioterapeutas e uma extensa lista de profissionais trabalham juntos para garantir que se a vida será breve ao paciente, que ela seja, então, vivida plenamente.
“Quando um bebê está para chegar, a gente não se prepara durante meses? Faz o pré-natal, arruma o quarto, a casa, se planeja financeiramente… Com a morte precisamos fazer a mesma coisa. Precisamos nos preparar para a chegada dela”, acredita a médica.
A média de internação na ala paliativa do hospital é de 14 dias. Sem protocolos frios e rotinas padrão, a medicina do cuidado abre espaço para que, nesse tempo, profissionais e pacientes criem vínculos.
“A gente se apega, sofre e chora com as famílias. Não tem como ser diferente. Nossa área exige que tenhamos empatia. Mas essa empatia não é se colocar no lugar do outro. É ser solidário ao seu sofrimento, sabendo que esse sofrimento é dele e eu tenho os meus”, comenta Érika.
Vida com qualidade até o fim
Basta ver a médica paliativista Suelen Medeiros desfilando um sorrisão largo pelos corredores do Serviço de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês em Brasília para se quebrar qualquer clichê triste ou tabu sobre morte e medicina paliativa. Se isso não bastar, dê chance a dois minutos de conversa. Não é a morte o seu instrumento de trabalho, mas sim o oposto dela. “A gente aqui lida com vida até o fim”, diz. “Pode ser de meses, horas ou anos. Mas é vida com qualidade”.
Assim como Érika, foi só na residência médica, na Universidade de São Paulo, que ela conheceu o cuidado paliativo. Diz que via alguns colegas praticando-o, mas não sabia o nome e nem havia aprendido a olhar para o paciente de forma integral na graduação.
Suelen foi buscar conhecimento onde a discussão sobre a importância do cuidado paliativo é mais antiga e passou um mês aprendendo sobre o tema no conceituado MD Anderson, nos Estados Unidos. Nega, no entanto, que o paliativo é exclusivo de paliativistas. Se o sofrimento é para todos, saber lidar com ele também deveria ser.
“Todos nós vamos passar por perdas na vida. O cuidado paliativo mexe com todo mundo por isso. Há uma dificuldade nossa como humano em aceitar o sofrimento”, reflete. Hoje, além dos pacientes do Sírio, Suelen também representa a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) no DF.
Derrubar barreiras e preconceitos contra o cuidado paliativo começa no momento em que se descobre a doença, e não quando ela já não tem mais tratamento. “O cuidado paliativo deve ser introduzido no diagnóstico. Ele não é só para o fim de vida. Sempre que há sofrimento, há indicação”, comenta.
A discussão é ampla justamente porque alguns médicos ainda encontram resistência quanto à prática ou simplesmente desconhecem sua importância. No entanto, tem ganhado visibilidade, especialmente por parte de estudantes e jovens profissionais.
A medicina tem conseguido controlar doenças incuráveis e as pessoas vivem mais. A questão agora é justamente essa: como vamos querer viver esse tempo a mais?
Suelen Medeiros, coordenadora do serviço de cuidados paliativos do Hospital Sírio-Libanês em Brasília
Medicina paliativa no Brasil
A ideia de uma medicina que prezasse pela qualidade de vida do doente teve início nos anos 1960 quando a enfermeira inglesa Cicely Saunders criou o conceito de “dor total”, que engloba tanto os sintomas físicos quanto os sociais e psicológicos da doença.
No Brasil, o movimento só teve impulso nos anos 1990, ainda de forma isolada. A própria Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), entidade que agrega os especialistas brasileiros da área, foi fundada apenas em 2005. E só em 2012 a Associação Médica Brasileira definiu a medicina paliativa como subespecialidade – ou uma “segunda” residência médica.
Cinco anos depois, pouca coisa evoluiu. Segundo André Filipe Junqueira, vice-presidente da ANCP, hoje abrem-se entre 20 e 30 vagas por ano de residência na área em todo o país. Duas delas no Hospital de Apoio, aqui no DF, sob tutoria de Érika Oliveira. “Até dois anos atrás, de mais de 180 faculdades de medicina, apenas quatro tinham alguma disciplina ligada a cuidados paliativos”, diz Junqueira.
Se você perguntar a um médico quantos partos ele acompanhou na formação, provavelmente ele dirá que dezenas. Mas pergunte quantas mortes presenciou. Poucas ou zero. Não ensinamos sobre fim de vida nas universidades.
André Filipe Junqueira, vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos
A consequência, o especialista acredita, é que muitos médicos saem das universidades vendo a morte como inimiga. “As pessoas acham que o objetivo é ‘lutar’ contra a morte. Você não luta contra uma coisa que você não vence. Você lida com ela”, reforça Junqueira.