Manual orienta pediatras em casos de “disforia de gênero” em crianças
Segundo o documento, 90% dos casos de “não conformidade de gênero” na infância desaparecem até a adolescência
atualizado
Compartilhar notícia
“Meu filho é trans?”. Não é preciso mais do que um clique para que o Google descortine, diante da dúvida, um sem-número de respostas. Em instantes, o site mostra 595 mil links que abrem janelas para o incerto. Reportagens, vídeos, uma página do “WikiHow” que promete, em 12 passos, desvendar aos pais se “uma criança é trans” como quem ensina uma receita de bolo. Em um dos mais populares fóruns de perguntas e respostas da internet, uma mãe relata comportamentos do filho – “só quer usar rosa, cabelo comprido”. A mulher diz que o proíbe de tudo para “não passar vergonha” e pergunta a anônimos se eles acreditam que o menino é transexual. “Não tenho preconceito, vou aceitar”, afirma.
Uma criança que nasce com o sexo biológico masculino e se sente mais confortável na presença de bonecas do que na de carrinhos vira um tabu em casa. No vasto mundo da internet e de informações desencontradas, no entanto, pode ganhar status de problema.Argumentando ter como objetivo combater preconceitos e informar o profissional que geralmente é o primeiro – quando não o único – a lidar com a saúde da criança e da família, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) resolveu se manifestar sobre a chamada “disforia de gênero”, na linguagem médica, em um documento voltado à atualização de especialistas. A iniciativa vem no momento em que a novela das 21h coloca no centro da sala de TV, em horário nobre, a transexualidade ao contar a história da personagem Ivan, que assumiu a identidade masculina no meio da trama.
“Esse assunto não pode ser visto como um fenômeno de moda”, disse a presidente da SBP, Luciana Rodrigues Silva, em nota divulgada durante o lançamento do manual. “É necessário extrema cautela e zelo, pois há o risco de consequências negativas decorrentes de ações impensadas”, advertiu.
Em 18 páginas, o documento aborda o conceito de “disforia de gênero” – termo que, ao carimbar a transexualidade como distúrbio, gera calorosos debates –, primeiros sinais e condutas, e terapias a serem abordadas. A apostila leva a assinatura dos departamentos científicos de Endocrinologia e de Adolescência da SBP e conta com o suporte científico de especialistas do Brasil inteiro, entre endocrinologistas, psiquiatras e especialistas em sexualidade.
“Não é uma resposta à coisa midiática do problema”, argumenta Crésio de Aragão Dantas, presidente do Departamento Científico de Endocrinologia da SBP. “Há anos, vemos um aumento da quantidade de literatura científica sobre o assunto e, por isso, achamos importante abordá-lo dentro da endocrinologia pediátrica”. A ideia, segundo o especialista, não é dar ao pediatra a ferramenta para o diagnóstico, mas, sim, “dizer que o problema existe e como acalmar os pais.”
Transitório
“O documento deixa claro que, entre 85% e 90% dos casos de disforia na infância, o indivíduo depois volta a se identificar com o sexo biológico. Na maioria das vezes, é um distúrbio transitório. Se o pediatra estiver apto a passar essa informação para os pais, sem preconceito ou julgamento, pode tranquilizá-los. Não é uma postura preconceituosa e nem de diagnóstico. É acolhedora”, diz Aragão.
Segundo o guia da Sociedade Brasileira de Pediatria, entre os seis e os nove meses de vida, os bebês já são capazes de diferenciar vozes e faces quanto ao gênero. Com 12 meses, associam vozes masculinas e femininas a objetos considerados “típicos” de cada gênero. A partir dos 17 meses, já conseguem se identificar como meninos ou meninas e começam a apresentar preferência por brincadeiras específicas.
Além de números e estatísticas, o manual lista opções terapêuticas, como o adiamento da puberdade com o uso de medicamentos, terapia hormonal e cirurgias. Também apresenta os efeitos colaterais e os riscos de cada procedimento. “Os tratamentos ali listados são consensos internacionais”, explica o endocrinologista.
A primeira coisa, quando você recebe um paciente com queixa de disforia, é ver se é aquilo mesmo ou apenas uma ‘rebeldia’. Se, passados vários anos de acompanhamento, ele realmente desejar pertencer a um sexo diferente do que o designado no nascimento, aí, sim, tem início a terapia de redesignação sexual.
Crésio Aragão, presidente do Departamento Científico de Endocrinologia da SBP
A terapia, conforme ele explica, tem três etapas: uma é reversível, de “congelamento” da puberdade até que o adolescente amadureça sua identidade de gênero; a segunda, parcialmente reversível, com dosagens leves de hormônios; e a terceira e final, irreversível, com a previsão das cirurgias de adequação biológica, como mamoplastias e vaginoplastias.
Além de responder à necessidade de maior oferta de publicações médicas sobre o tema, o especialista diz que o documento serve também a uma maior demanda de informação por parte dos pais, principalmente para aqueles que fogem de fóruns na internet e guias “passo a passo” de diagnóstico.
“Os pais têm nos procurado confusos porque há muita informação. Eles querem saber se o comportamento do filho vai resultar ou não em uma disforia. O pediatra é o médico da família. Muitas vezes, é a ele que essa queixa chega. Ele é quem deve explicar e acompanhar junto a uma equipe, se for o caso”.
“Se eu não tiver o CID, não consigo nada”
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), uma espécie de enciclopédia de transtornos psíquicos, coloca a disforia de gênero debaixo da asa de “controvérsias relacionadas à sexualidade”. O CID10, livro internacional de classificação de doenças, atribuiu à transexualidade um código de diagnóstico: F64 ou F64.2 para casos na infância e F64.9 para adolescentes.
A classificação da condição como “doença” é tema de discussões acaloradas entre especialistas e a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros (LGBT). A expectativa é que a próxima edição do CID troque o termo “disforia” por “incongruência”.
“Geralmente, quando a família procura um psiquiatra, é para tratar. E tem psiquiatra que trata, porque leva a sério essa coisa da ‘patologização’”, comenta Melissa Massayury, 28 anos, mulher trans. “E eu preciso desse CID no meu documento para ter acesso a alguns direitos. É como se eu dissesse para as autoridades: ‘olha, eu preciso desse direito ou desse documento porque tenho essa patologia'”, sustenta.
“A transexualidade precisa de tratamento e é diferente da homossexualidade, que não é considerada doença”, explica Crésio Aragão, da SBP. “Nós, médicos, não tratamos homossexualidade, é uma sandice. Mas a transexualidade precisa de tratamento hormonal e cirúrgico para que a pessoa fique de acordo com o gênero com o qual se identifica. Por isso a classificação”, justifica o especialista.
A “disforia” – em termos diagnósticos – de Melissa teve início ainda na infância. “As meninas brincavam comigo achando que eu também era menina. Eu tinha os cabelos longos, comportamento afeminado, gostava mais de brincadeiras consideradas de menina”, conta. Com a adolescência, quando os hormônios chegaram, vieram também as descobertas. “Foi quando comecei a me descobrir como pessoa, descobrir que tinha um órgão genital. Aí, sim, vi que tinha alguma coisa ‘errada’”, explica.
Isolada da família e da sociedade por medo e preconceito, Melissa tomou o caminho mais fácil para a grande maioria da população transexual: iniciou a terapia hormonal por conta própria, aos 16 anos. “É muito difícil sem o apoio da família. Querendo ou não, o adolescente está condicionado ao querer dos pais”, diz.
Doze anos depois, mais empoderada, como ela se define, acredita que um acompanhamento adequado ainda na puberdade teria tornado as coisas mais fáceis – inclusive para a família. “As travestis e as transexuais não brotaram do nada. Elas foram geradas, nasceram, tiveram infância e adolescência”, comenta. “Foram as mesmas por todas essas fases, mas as pessoas não consideram isso. Uma criança não deixa de ser pura porque é trans. Ela não sabe sequer o que está fazendo, age instintivamente”, acrescenta Melissa.