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Em fevereiro do ano passado, Idelaine Áurea Resende da Costa, 26 anos, foi informada por um primo de que a história trágica da família havia se repetido. A depressão acabara de levar o empresário Fábio Oliveira da Costa, tio e padrinho da comerciante.
Ele se matou em casa, no bairro Dias, na entrada de Itaguara (MG), município localizado a 100 km de Belo Horizonte (MG). Idelaine ficou abalada, mas não se surpreendeu com a notícia. Nos últimos 20 anos, vários parentes também se suicidaram: o pai, Adalto de Oliveira, a avó Zélia e cinco primos.
“Desta vez, só estranhei pelo fato de o meu padrinho ser uma pessoa calma e com situação financeira estável. Suicídio é uma história recorrente na família e em toda a cidade. Por isso, passo mal quando chego a Itaguara”, disse a comerciante, que mora no povoado do Rio São João, situado em Itatiauçu (MG), a 18 km de Itaguara, município onde nasceu.
O escritor Guimarães Rosa começou sua carreira médica em Itaguara no início da década de 1930 – com a tarefa de combater um surto de malária. A realidade se repete em 2020. A exemplo do resto do país, as aulas nas escolas públicas da cidade mineira foram canceladas – uma das medidas adotadas pelo governo local para impedir a propagação do novo coronavírus. Mas a pandemia, que tira o sono do mundo, está longe de ser o assunto mais comentado no município.
Nas praças, nos bares e bairros, os temas recorrentes são a depressão e os casos de suicídio. Na terça-feira (17/03), o assunto voltou a assombrar os moradores da região. Uma estudante de 22 anos, que lutava para se livrar das drogas, morreu após se jogar contra um carro na rodovia Fernão Dias. De acordo com dados das funerárias de Carmópolis de Minas (MG), foi o terceiro episódio de suicídio neste ano no município, localizado a 12 km de Itaguara.
“A história dessa menina me lembrou a da minha filha, que se matou em casa. Ela era minha única alegria na vida. Vivo às custas de calmantes para não cometer a mesma besteira”, contou a empregada doméstica Aparecida Soares.
A mulher, conhecida na cidade como Loira, chorava compulsivamente enquanto conversava com o Metrópoles. Ela aceitou dar entrevista com a condição de não revelar o nome da filha morta e o da que tentou cinco vezes se suicidar.
Segundo a empregada, ela nunca podia imaginar que a caçula fosse tirar a própria vida. O episódio trágico aconteceu em fevereiro de 2018. A menina aparentava ser uma jovem feliz. Excelente bailarina, alegrava os forrós e as baladas da cidade.
Com base em dados da polícia e das funerárias de Itaguara, seis pessoas se mataram no ano passado. Numa escala de 100 mil habitantes, esse número saltaria para 30. Quando comparado ao Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, o índice está muito distante da média nacional, registrada em 5,8 suicídios para cada 100 mil pessoas.
O mesmo levantamento apontou que Carmópolis tem taxa de suicídio um pouco menor do que a de Itaguara: 21 pessoas para cada 100 mil. O alto índice de mortes por esse motivo nas duas cidades chama a atenção de especialistas em doenças mentais.
Apesar de não conclusivos, estudos apontam um componente genético no suicídio. “Os pesquisadores estão tentando associar esses casos a um gene defeituoso que não produz a serotonina, substância responsável pela alegria e pelo controle da compulsão”, explica o psiquiatra Fábio Lopes, coordenador da clínica do Instituto de Previdência do Estado de Minas.
Ainda de acordo com o médico, que é um dos profissionais mais renomados no tratamento de depressão do país, o suicídio é também impulsionado por vários fatores externos – como o uso excessivo de drogas e álcool; desagregação da família; problemas financeiros.
No caso de Itaguara, um estudo encomendado pela secretaria de Saúde revelou outro indicador do aumento de casos de depressão na região: a posição geográfica do município, que está situado em um buraco rodeado por montanhas.
A coordenadora do Centro de Referência de Saúde Mental (Cersem) da cidade, Maria Silvia Gomem, explicou que a pesquisa ajudou os especialistas de saúde a comprovar o grande número de suicídios. O dado foi usado como justificativa para a abertura de uma clínica de tratamento na região.
O Cersem foi criado em 2012 com o objetivo de atender os 20 mil moradores dos municípios de Itaguara e Carmópolis de Minas. “A situação ainda é crítica, ninguém nega. Mas, depois da criação do centro, melhorou. Antigamente, dizia-se que era preciso encher todas as caixas d’água de antidepressivos para acalmar a população. Hoje, o quadro está um pouco melhor”, afirma Maria Silvia.
Longe das teorias científicas, os parentes das vítimas se apegam à fé para superar a dor e evitar novo caso de suicídio na família. Na comunidade rural de Bútua (MG), situada na divisa de Itaguara e Carmópolis, o agricultor, pintor e escultor José Maria Rodriguez Romão criou um santuário dentro de casa.
O oratório é palco, todos os dias, de preces puxadas por ele e pela mulher, Maria Aparecida. O casal pede a Deus que a tragédia não volte a se repetir na família. Católicos convictos, os dois usam até mesmo a crença Kardecista em seus louvores.
“Temos convicção de que essas pessoas não morreram. São espíritos intranquilos necessitados de descanso, por isso rezamos por eles”, pontua Maria Aparecida Lucas Guimarães, mulher de Zé Maria. Um parente dela – tio Lucas Pereira – também se matou.
Em suas preces, José Maria tem dificuldade de contabilizar o número de parentes que tiraram a própria vida. O pai do agricultor, Francisco Rodriguez, se enforcou em 1995; e o tio Jaci Rodriguez se matou com um tiro na cabeça há 10 anos. José Maria é primo de Fábio, o comerciante que se suicidou no ano passado, e da aposentada Raquel Oliveira Costa, cujos filhos – Daniel e Leonardo Oliveira – morreram sufocados em 1998.
Até 1888, quando a Lei Áurea foi sancionada, Bútua abrigava grande quantidade de senzalas. O tataravô de José Maria trabalhava como torturador de pessoas escravizadas. O escultor está entre os moradores que acreditam em uma lenda urbana nascida pós-era colonial. Para esse grupo, a onda de suicídio tem a ver com os assassinatos além dos abusos físicos e mentais de negros durante e depois da escravidão.
“Os suicídios são praticados por espíritos que, no passado, enforcavam pessoas escravizadas. Por isso, não conseguem escapar”, acredita João Grego, coordenador do principal centro espírita de Itaguara.
Difundida pelos adeptos de João Grego, a crença é conhecida como a maldição dos Costas. A teoria, conforme acreditam, se deve ao alto número de suicídio na família Costa, que, no passado, mantinha grande quantidade de negros escravizados numa fazenda de cana de açúcar.
“Faz uns 20 anos do último suicídio praticado pelos Costas na cidade. Posteriormente, eles nos contaram que as filhas deles se mataram também”, relata o escultor José Maria. As vítimas, segundo a população, eram parentes do bispo de Oliveira (MG), Miguel Costa.
“Sim, houve vários casos de pessoas que tiraram a própria vida na família do meu pai. Mas essa história de espírito é apenas uma lenda criada pelo povo do interior”, afirmou o veterinário Humberto Costa, irmão do bispo.
Boa Vista (MG) é outro povoado rural de Itaguara assombrado pela depressão e pelo suicídio. “Temos uma população de 900 habitantes, e todo ano uma pessoa se mata ou tenta se matar”, revela o agricultor Geraldo Andrada, tio de Daniel Rabelo, 22, que tirou a própria vida depois de frequentar uma festa junina em junho de 2018. “Nunca imaginei que meu sobrinho faria isso. Trabalhamos juntos antes de ele cometer a loucura. Estava alegre”, desabafa.
Vizinho de Geraldo, o agricultor Paulo Sérgio de Oliveira, 50, luta contra a depressão desde a adolescência e, no ano passado, tentou tirar a própria vida. Ele tomou várias caixas de remédio, mas conseguiu ser socorrido a tempo. Paulo não entende de onde veio a vontade de se matar. “Me deu uma dor na cabeça e, quando acordei, já estava no hospital”, relata.
Paulo está entre os pacientes assistidos pelo Cersem de Itaguara, onde, além de receber tratamento psiquiátrico, participa de várias oficinas de arte e jardinagem. A exemplo do agricultor, os parentes da aposentada Rosilene do Rios, 50, ainda tentam superar o trauma. Em 2014, a mulher se jogou de cima de uma passarela na rodovia, numa tentativa de se suicidar.
“É uma dor que abala todo mundo da família. Minha tia sempre foi uma mãe para mim. Com sorte, ela saiu da situação viva, mas quebrou várias vértebras e precisa usar um colete. Desde o incidente, cuidamos da tia de perto”, disse Érica Maria Reis, sobrinha da mulher.
Rosilene também morava no bairro Dias. Os casos de suicídios tornaram-se uma rotina na região. Prima em primeiro grau do agricultor Paulo Sérgio, Júnia Oliveira deixou a localidade em fevereiro de 2018 para se matar numa represa no município de Itaúna. Antes de morrer, fez um bilhete de despedida. Quando a família achou o papel, Júnia, que lutava contra as drogas, já estava morta.
Guimarães Rosa e o estudo das doenças mentais
O tratamento da depressão é uma prática relativamente nova na medicina. Mas desde a década de 1930 as doenças da mente já chamavam a atenção do médico João Guimarães Rosa. De acordo com relatos de familiares, ao Museu Sagarama, inaugurado em 2012, o escritor tratou, nos meses vividos em Itaguara (MG), de três jovens que enfrentavam problemas psicológicos.
Guimarães Rosa morou de 1930 a 1931 em Itaguara. Ele percorria, a cavalo, o povoado de Parada Vilela para combater um surto de malária. A doença se tornou tema principal do conto Sarapalha, que faz parte do livro Sagarana, lançado pelo escritor em 1946.
“O Guimarães, além de médico, sempre trabalhava o lado psicológico de seus pacientes”, salienta a coordenadora do Museu Sagarana, Maria Silvia Homem. De acordo com ela, outros personagens do livro são inspirados em moradores da cidade: “Por exemplo, o ex-delegado da cidade Major Lutz aparece no conto a Hora e a Vez de Augusto Matraga”.
Maria Silvia explica que o escritor só retornou ao município na década de 1950, para assistir à celebração das bodas de ouro dos pais. Mas Guimarães Rosa nunca perdeu o contato com os amigos da cidade.
No museu, por exemplo, estão arquivadas as cartas que ele enviou ao médico e colega Manuel Carvalho. Nos textos, os dois trocam opiniões sobre como tratar pacientes. Também se encontram no local, um atestado de óbito assinado por Guimarães Rosa, objetos pessoais, como óculos, e as fotos dos personagens de Itaguara que inspiraram o autor.
As doenças da mente e o suicídio chamavam a atenção de outro escritor: o argelino Alberto Camus. Para o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e autor de O Estrangeiro, o suicídio é o único assunto importante da filosofia. O mesmo dilema é vivido por muitos pais em Itaguara, que tentam entender o que levou seus filhos a tirarem as próprias vidas.
Os pais do estudante de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luis Gustavo Morais procuram relembrar todos os momentos da vida do filho para encontrar uma pista da depressão. O universitário cometeu suicídio em 2014. Ele falava seis idiomas, acabara de voltar de um estágio na Alemanha e tinha emprego garantido numa empresa de automação. O jovem entrou em desespero depois de romper um relacionamento.
“Meu filho era um rapaz feliz, nunca teve depressão e nem bebia. Viajou por todos os cantos do mundo. Não dá para entender porque ele fez essa besteira”, lamenta a mãe do estudante, Vilma Morais, enquanto mostra a foto de Luis Gustavo.
A exemplo da mãe do estudante que tirou a própria vida, os moradores de Itaguara não tentam esconder a doença que assombra a região. Eles enfrentam o problema com muita dor e pedem socorro para conter uma prática que cresce assustadoramente no país.
“Ao contrário do resto mundo, somente no Brasil e nos Estados Unidos, os casos de suicídios aumentaram. No país norte-americano, a prática foi impulsionada pela crise no mercado imobiliário. E aqui no Brasil, ainda não existe nenhuma pesquisa conclusiva”, assinala o psiquiatra Fábio Costa. Só lhes resta rezar.
Prevenção em pauta
O Metrópoles tem a política de publicar informações sobre casos de suicídio ou tentativas que ocorrem em locais públicos ou causam mobilização social com o propósito de alertar a população.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o assunto não venha a público com frequência, para que o ato não seja estimulado. O silêncio, porém, camufla outro problema: a falta de conhecimento sobre o motivo que, de fato, leva essas pessoas a se matarem.
Depressão, esquizofrenia e uso de drogas ilícitas são os principais males identificados pelos médicos em um potencial suicida. Situações que poderiam ser tratadas e evitadas em 90% dos casos, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria.
Está passando por um período difícil? O Centro de Valorização da Vida (CVV) pode te ajudar. A organização atua no apoio emocional e na prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo. O CVV atende todos os dias, 24 horas, por telefone, e-mail, chat e Skype.