Coronavírus alarma povos indígenas: “Medo de mais uma dizimação”
São quase 900 mil indígenas no Brasil. Maioria das aldeias se isolou, mas pressões como garimpo e conflitos com fazendeiros aumentam risco
atualizado
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O medo do coronavírus transformou o cotidiano dos pouco mais de 900 mil indígenas brasileiros, dos quais 800 mil vivem em aldeias. Por decisão própria e seguindo orientações do governo, eles fecharam suas aldeias e se isolaram em casa, deixando de exercer o convívio coletivo que marca a maioria das culturas. A quarentena, porém, não é respeitada por garimpeiros e outros invasores, e lideranças temem que, uma vez inserido o vírus, os serviços de socorro não deem conta de conter os estragos em uma população especialmente vulnerável a epidemias.
A notícia (depois desmentida) de que um indígena havia morrido com Covid-19 no DF na tarde de sexta-feira (27/03) aumentou ainda mais o clima de apreensão entre todas as etnias.
“Estamos muito apreensivos e vigiando. Sabemos que os mais velhos são vulneráveis e isso nos alarma, porque uma sociedade sem seus velhos não têm sabedoria. Para nós, eles são as raízes da nossa sabedoria”, conta Nyg Kaingang, que vive na Terra Indígena Apucaraninha, no interior do Paraná, com mais 2.100 pessoas que estão há uma semana em isolamento.
“O confinamento é muito estranho para os indígenas. Não podemos nos visitar dentro da própria aldeia, não faz parte da nossa vivência. Mas estamos seguindo por temor, tendo em vista o histórico que temos com relação a epidemias introduzidas em nossos territórios, que foram uma das maiores e principais armas de extermínio de nossos povos”, completa a indígena, que estuda serviço social na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Um assunto em alta no mundo não indígena, as perdas econômicas no rastro da pandemia também preocupam muito os Kaingang, que vivem em grande medida da venda do artesanato que produzem. “Precisamos dessa renda. Na reserva, 70% é floresta preservada e sobra pouco espaço para produzir. Alguns parentes inclusive estavam fora quando fechamos as aldeias, vendendo artesanato, e estão impedidos de entrar, porque as lideranças temem que tragam o vírus. Uma situação muito complicada”, resume Nyg.
Apesar de as aldeias estarem isoladas, ela teme que o vírus entre na população indígena em regiões onde as terras não foram demarcadas ou sofrem com invasões. “Assim como na região amazônica os povos indígenas enfrentam a questão do garimpo, da madeira, na região Sul há o contexto das retomadas, em que os Kaingang e os Guarani estão sendo atacados por posseiros, por fazendeiros. Então tememos essa epidemia seja mais uma arma biológica contra os nossos povos.”
Falta de estrutura de saúde
Do outro lado do país, entre Bahia e Pernambuco, os 12 mil Pankararu também se fecharam, mas, cercados por cinco cidades, temem não conseguir socorro se o vírus passar pelas barreiras. “O nosso sistema de saúde atualmente já está falido, já não dá conta de atender os casos de doenças crônicas ou qualquer situação de média ou alta complexidade”, narra a indígena Cristiane Julião.
“Aqui falta material humano e equipamento nas cidades. Para nós, que temos uma população idosa considerável, não chegam informações, cuidados. Sobre testes, por exemplo, ninguém nos falou absolutamente nada até agora”, completa.
O sistema
Os cuidados com o coronavírus em relação aos povos indígenas estão sob a responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde e que coordena 34 Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI) espalhados pelo país.
No plano de contingência que criou para o enfrentamento ao coronavírus, o órgão admitiu que, “historicamente, observou-se maior vulnerabilidade biológica dos povos indígenas a viroses, em especial às infecções respiratórias. As epidemias e os elevados índices de mortalidade pelas doenças transmissíveis contribuíram de forma significativa na redução do número de indígenas que vivem no território brasileiro”.
Questionado pelo Metrópoles sobre as preocupações dos indígenas, o órgão informou que “desde janeiro de 2020, antes mesmo de a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, executa estudos e ações voltadas à prevenção”.
Apesar de reclamações sobre a falta de informação, a Sesai informa que “neste momento, equipes multidisciplinares dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas estão realizando ações de orientação nas aldeias, mostrando todos os cuidados estabelecidos pelo Ministério da Saúde aos indígenas e pedindo, especialmente, que mantenham-se em suas aldeias para evitar o contato com o coronavírus”.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) reforçou, em nota, que não está permitindo a entrada de não indígenas nos territórios e que também está divulgado informações sobre prevenção em todas as regiões.
Coordenação entre os indígenas
Insatisfeitos com as ações do poder público até agora, os indígenas também estão fazendo os próprios esforços para se organizar. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) está unindo lideranças de todas as regiões em um debate (virtual, via WhatsApp) para discutir como lidar com a crise. “Nossa preocupação é como lidar se acontecerem casos. Porque, como já disse, somos vulneráveis a essas verdadeiras armas biológicas. Então precisamos ter um plano de enfrentamento”, diz Nyg Kaingang, que colabora com a entidade.
“Temos que nos manter organizados mais do que nunca para prevenir o máximo o contágio de nossos povos, principalmente nesse momento em que temos enfrentado o desmonte das políticas indigenistas pelo atual governo”, conclui.
Regionalmente, há esforços como o da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborun, que criou a cartilha que pode ser vista abaixo, com informações sobre a Covid-19 na língua dos Munduruku, que vivem no Pará, no Amazonas e em Mato Grosso.
A indígena Alessandra Korap, que é Munduruku, explica que os povos amazônicos estão se fechando e tomando os cuidados, mas se preocupam muito com a introdução do coronavírus por meio de invasores das terras indígenas.
“A situação do conflito com garimpeiros e madeireiros está pior porque não há fiscalização do governo federal dentro dos territórios. Essa política do governo não se preocupa nem com quem votou neles, imagina com os povos indígenas. É assustador para nós”, conta ela.
“Também as distâncias nos preocupam. Muitas vezes não chega informação na aldeia mais distante, mas o vírus pode chegar antes”, avalia ela. “É uma constante tensão a vida do indígena. Antes era a bala, agora tem o vírus. Nos preocupamos como mulheres, como filhas, como mães. É duro”, conclui.
INFORMATIVO COVID WAKOBORUN by Raphael Veleda on Scribd