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São Paulo – O economista Nelson Marconi, que coordenou o programa econômico do então candidato a presidente da República Ciro Gomes (PDT) em 2018, vê o encerramento a produção local da Ford como mais uma etapa do processo de desindustrialização do país.
“Fazer política industrial só para compensar desajuste macroeconômico não vai resolver os problemas”, afirma o coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV, em entrevista ao Metrópoles.
Para Marconi, o governo deveria adotar um programa “claro” de incentivo ao setor automotivo com metas definidas para as companhias, que resultassem em maiores exportação e atração de etapas mais importantes da cadeia produtiva, além do desenvolvimento de tecnologias limpas.
Qual é o significado do fim da produção da Ford no país?
A Ford é um caso que está dentro de um contexto maior, deste processo de desindustrialização do país. E isso que é o mais complicado, é o que está gerando uma perda muito grande, tanto do ponto de vista produtivo quanto de empregos ao longo da cadeia. Aí, são empregos também de serviços e de vários setores da indústria. O encadeamento produtivo desse setor é bem relevante. A Ford não é um caso isolado. É lógico que tem um peso simbólico, que é relevante, mas é um processo que já vem acontecendo. Você já tinha dentro do setor automotivo outras fábricas fechando, e em outros setores também. O país está perdendo efetivo produtivo.
Entidades do setor industrial destacaram que a decisão da Ford serve como alerta para a necessidade de reformas e redução do custo Brasil. Qual é a sua avaliação sobre isso?
Mais que do que as reformas, o cenário macroeconômico do país, a falta de demanda, o período tão extenso de juros altos e de moeda apreciada fazem com que as empresas mudem suas decisões de investimento aqui. Falta uma estratégia do governo de exportação. Agora, uma coisa é falar que estamos fazendo uma abertura comercial e o governo propor a abertura de compras públicas a empresas estrangeiras. Quer dizer, nós estamos fazendo o contrário dos outros países. A abertura comercial que a gente tem que fazer é estimular a exportação, não o contrário.
E como isso afeta a indústria automotiva?
O cenário macroeconômico muito ruim e a falta de política comercial do Brasil fazem com que as empresas reduzam a produção aqui ou se transformem em meras montadoras. Por que a Ford mantém a produção em outro país, e não aqui? Isso não é uma decisão isolada da empresa. É consequência de uma política econômica errada, de uma abertura às avessas, que só vai prejudicar ainda mais a economia e, logicamente, de uma estrutura tributária ruim que implica em um aumento do custo de produção aqui e, aí, eu concordo.
Quais podem ser as consequências desse modelo atual?
Com o tempo só vai sobrar empresa da área do agronegócio e do setor financeiro. No caso do setor do agronegócio, mesmo que você tenha uma série de problemas do ponto de vista macroeconômico, eles conseguem manter uma margem de lucro razoável. O setor financeiro tem margem de lucro alta. Sem contar que o setor do agronegócio tem uma série de subsídios.
A política de subsídios para o setor automotivo não deu certo?
Todos os países que se desenvolveram ou que estão se desenvolvendo usam políticas de subsídios para estimular os setores mais estratégicos. Assim fazem os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão, a China, a Ásia toda. O problema não é no mecanismo do subsídio, é o que você, governo, exige como contrapartida, quais são as metas que coloca e como cobra esses resultados. A gente tem sido talvez muito leniente na cobrança de resultados. Pelo volume de subsídios que o governo concede, já era para indústria automobilística estar muito mais avançada em termos de tecnologia, inserção em cadeias globais de valor e geração de emprego de qualidade. Por que não dá certo a política? Em parte, por falta de condições adequadas, de cobrança e de metas adequadas. E, por outro lado, como a política macroeconômica está muito desajustada há algum tempo, a política industrial não vai compensar esse desajuste. A política industrial usada de forma compensatória a desajustes macroeconômicos tende a não dar certo. Não é o instrumento em si que é o problema.
Qual seria a saída para o setor?
Seria, primeiro, a recuperação da economia, mas não algo específico para o setor automotivo, mas para toda a indústria. A primeira coisa seria a recuperação no nível de atividade, da demanda. Em segundo lugar, especificamente para o setor automotivo, o governo deveria ter um programa claríssimo de incentivo a exportações e de atração de etapas mais relevantes dentro de cadeia de valor. Dentro do processo produtivo, que tivesse um incentivo claríssimo, com etapas que são relevantes no processo de produção, cobrando que isso resultasse em exportações. Ao mesmo tempo, o governo precisaria fazer um programa de estímulo às exportações. E esse plano deveria também ser muito direcionado para a geração de tecnologias limpas, para o desenvolvimento de carros elétricos, que é o que está acontecendo em outros países. O Rota 2030 tem um pouco desse mecanismo de geração de tecnologias menos poluentes, mas não tem um estímulo muito forte ao desenvolvimento de carros elétricos, formas de energia mais sustentáveis.
Mais montadoras podem seguir o caminho da Ford?
Se deixar o cenário como está, as montadoras que ficarem vão cada vez mais importar mais insumos, quer dizer, vão desmontar a cadeia produtiva aqui, vão trazer etapas menos relevantes do processo produtivo para cá. E, com o tempo, elas também podem acabar saindo ou montando modelos mais simples aqui. Então, é preciso uma política diferente, mas com cobrança muito clara de avanço tecnológico e tudo mais. Afinal, nós ainda somos um dos maiores mercado mundiais de automóveis e temos condições de exportar, sempre fomos um dos principais países da indústria automobilística. Então, a gente tem condições de recuperar isso. Acho muito difícil que este governo faça isso. Este governo atua no sentido oposto, mas há condições de salvar o setor.
Qual é o papel da reforma tributária nesse processo?
A reforma tributária é muito importante no processo. O governo deve desonerar mais a produção e onerar os mais ricos. O ideal é onerar mais a renda. A estrutura tributária do país hoje é muito concentrada na cobrança de tributos sobre a produção e proporcionalmente menos sobre a renda quando a gente compara com outros países. A primeira coisa é mudar esse mix, inclusive para tributar os mais ricos. E isso também contribui para o processo de distribuição da renda. A segunda coisa é que quando a gente olha a tributação sobre a produção e setores, a indústria tem um ônus tributário bem maior que os serviços, o setor financeiro e o setor agropecuário. Isso também atrapalha muito a indústria nacional. Então, além de mudar esse mix de tributação sobre a produção e a renda, você precisa também reequilibrar melhor a tributação entre os setores. E esse projeto que está no Congresso vai nessa linha, mas ele aumenta de uma vez, muito rapidamente, a tributação sobre os serviços e isso deveria ser feito de forma mais gradual ou, então, você justamente tentar diminuir a tributação sobre a produção e aumentar sobre a renda. Não tem outro jeito. Esse (o sistema tributário) é realmente um entrave, mas não é o único.
Quais são os outros entraves, além do sistema tributário?
Ele é importante, assim como o câmbio apreciado, que agora depreciou, e os juros altos durante muito tempo. Tantos custos juntos acabam prejudicando muito as empresas. Eu vi uma das notícias de que a Ford estava dando como uma das justificativas para sair do país o dólar alto. Mas como? Ela deveria estar contente com isso para poder exportar, mas depois de tanto tempo de [moeda] apreciada, a empresa vira uma importadora. Aí, o câmbio alto prejudica mesmo, enquanto importadora. E essa condição não gera tanto emprego, desmonta a cadeia produtiva do país. Então, você tem um impacto alto desse processo de o câmbio ter ficado apreciado por tanto tempo e os juros altos impedindo investimentos e aumentando os custos financeiros das empresas. Não é só a questão tributária, que também é importante.