Retomada da vacina contra leishmaniose visceral canina é uma incógnita
Sem a vacina contra a leishmaniose, mais de 58 milhões de cães correm risco de contrair a doença, que também pode afetar humanos
atualizado
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Há quase cinco meses, o Brasil não vacina nenhum cão contra a leishmaniose visceral — zoonose (doença que pode ser transmitida de animais para humanos ou vice-versa) de evolução crônica que, se não tratada, pode levar a óbito até 90% dos casos, de acordo com informações presentes no site do Ministério da Saúde.
O país está nesse cenário porque o único imunizante em comercialização no país, o Leish-Tec, teve a fabricação e a venda suspensa pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) devido ao “desvio de conformidade do produto”.
Ao Metrópoles, tutores e veterinários afirmam que temem um cenário de escalada nacional descontrolada de leishmaniose visceral (doença que não tem cura) com a falta de vacinas para os pets.
O levantamento mais recente (veja abaixo) do Instituto Pet Brasil (IPB) mostra que, ao todo, o Brasil tem uma população de 149,5 milhões de animais de estimação, destes, mais de um terço é de cães. Logo, essa zoonose pode se espalhar entre 58,1 milhões de cachorros.
Recolhimento de lotes do imunizante contra a leishmaniose
Em 24 de maio, o Mapa determinou a suspensão do imunizante no país, além do recolhimento de oito lotes: 029/22; 037/22; 043/22; 044/22; 060/22; 004/23; 006/23; 017/23. Todos eles foram reprovados após a pasta detectar “a degradação do antígeno”, um componente que induz a imunidade nos animais.
A fiscalização constatou “desvio de conformidade do produto, que pode ocasionar falta de eficácia da vacina, gerando risco à saúde animal e à saúde humana”. As vacinas foram produzidas pela Ceva Brasil, empresa atuante no mercado de saúde animal.
“Foram identificados alguns desvios nos lotes 029/22, 037/22, 043/22, 044/22, 060/22, 004/23 que, em linha com orientações das autoridades, devem ser recolhidos imediatamente. A empresa está tomando ações internas para identificar as razões dos desvios e corrigir a situação o mais breve possível”, diz comunicado no site da Ceva.
O que é a leishmaniose visceral
Conforme definição do próprio Ministério da Saúde, a leishmaniose visceral é uma “zoonose de evolução crônica, com acometimento sistêmico”. A doença é transmitida ao ser humano pela picada de fêmeas do inseto vetor infectado, denominado flebotomíneo, o conhecido mosquito-palha.
O veterinário Thiago Borba explica que o país já vive um endemia da doença, onde, por exemplo, Brasília, no Distrito Feral, o estado de Minas Gerais e algumas regiões do Nordeste são áreas consideradas endêmicas.
Ele acredita que, para reduzir e conter a doença no país, o ideal é massificar a questão da testagem, abaixar os impostos sobre a matéria-prima dos medicamentos e produtos que combatem a leishmaniose e investir em pesquisas. “O governo tem que entender que testar um cão é mais barato do que tratar um humano”, disse.
Devido à ausência de um imunizante no mercado, ele defende que outras fabricantes tentem conseguir o aval das entidades reguladoras (Mapa e Ministério da Saúde) para comercializar o produto no Brasil.
Outra medida, segundo o veterinário, seria a inclusão de um programa de saúde pública. “Assim como fizemos com a raiva, dá para pensar em um projeto sobre a leishmaniose. Mas, como a doença tem um progresso lento e controlado, o governo não mostra muito interesse. Acredito que seria necessário não deixar tomar as proporções de uma pandemia”, analisou.
Efeitos provocados pela não vacinação dos cães
Riscos para cães e tutores
Thiago Borba lista alguns malefícios provocados pela leishmaniose. Como é uma doença debilitante, podem surgir uma série de ferimentos nas extremidades do corpo do cão, por exemplo, nas pontas de orelhas, focinho e entre as patas. “Não é curável, mas é tratável”, afirma.
Já nos seres humanos, os principais sintomas da doença são:
- Febre de longa duração;
- Aumento do fígado e baço;
- Perda de peso;
- Fraqueza;
- Redução da força muscular; e
- Anemia.
Vale ressaltar que a leishmaniose visceral não é transmitida diretamente do pet contaminado para o tutor. A doença é transmitida por meio da picada de insetos (mosquito-palha, asa-dura, tatuquiras, birigui, dentre outros). Essa transmissão ocorre quando fêmeas infectadas picam cães ou outros animais infectados com carga parasitária elevada, e depois picam o ser humano, transmitindo o protozoário causador da leishmaniose visceral.
Então, caso seja pai ou mãe de pet, não se preocupe em ser contaminado durante brincadeiras, quando tiver contato com saliva, pelos ou ser arranhado pelos bichos.
Como proteger os pets sem a vacina
Thiago Borba aconselha os tutores de cães, gatos e outros animais de estimação, a recorrer a outras medidas devido à interrupção da vacina, que ainda está sem previsão de retomada, contra a leishmaniose visceral canina. O veterinário recomenda ter:
- Coleiras contra pulgas, carrapatos e mosquitos;
- Repelentes de mosquito para animais; e
- Testagem de rotina.
Mesmo contaminado, se for realizado acompanhamento com veterinário, o animal não deve morrer pela doença. “Hoje o tratamento já está difundido, grande parte dos veterinários e clínicas sabem e tem condições de fazê-lo”, explica Borba.
“O cão não vacinado pode sim contrair a leishmaniose. Para oferecer uma vida melhor ao animal, o tratamento é por meio de quimioterapia, onde ocorre o controle da doença, uma vez que não é possível zerar a carga parasitária”, afirma o veterinário.
Borba frisa que o bicho portador da doença ainda tem “uma vida muito normal e, no fim, nem deve morrer pela doença”. Mas, ele reforça a necessidade de tratar os pets para evitar o avanço de efeitos debilitantes.
O outro lado
Procurada pelo Metrópoles, a assessoria de comunicação do Mapa informou que, no Brasil, “a fabricação ou importação de produtos de uso veterinário é uma atividade privada, não havendo ação ativa por parte do governo na aquisição e distribuição de produtos para a sociedade. O papel do Ministério da Agricultura e Pecuária é verificar a qualidade do produto quando do pedido de registro no país”.
Sobre os procedimentos adotados para conter uma possível propagação dessa zoonose, o Mapa afirmou que o “programa de leishmaniose é um programa do Ministério da Saúde”, ou seja, as ações relacionadas à doença são responsabilidade da pasta.
Em nota enviada ao portal, o MS se pronunciou sobre as medidas a respeito do controle de uma possível endemia da leishmaniose visceral no país. A pasta da Saúde destacou que “incorporou a estratégia de encoleiramento de cães com coleiras impregnadas com inseticida nos municípios prioritários para transmissão da doença em humanos”, apenas neste ano, foram distribuídos 135.183 objetos.
“Essa estratégia baseia-se na utilização de coleiras impregnadas com inseticida em cães com potencial repelente, diminuindo o número de animais que são picados pelos insetos vetores e, consequentemente, interrompendo o ciclo de transmissão da doença. Essa é a ferramenta que apresenta maior efetividade na redução de casos caninos e humanos de LV”, diz trecho de comunicado.
O Ministério da Saúde ainda disse que a vacina antileishmaniose canina não é oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) porque “não é considerada uma ferramenta de controle para saúde pública, ou seja, não há evidências científicas que a vacinação em massa de cães seja capaz de reduzir casos humanos e caninos da doença. Portanto, não é uma tecnologia em saúde recomendada pelo Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral do Ministério da Saúde para a prevenção e controle da doença em humanos”.
Responsável por fabricar a vacina, a Ceva Brasil comunicou ao portal que, por enquanto, “manterá a suspensão da vacina e está empenhando os maiores esforços e investimentos para identificar a causa primária dos desvios e a solução para a ocorrência”.
Em nota ao Metrópoles, a empresa ressaltou que, à época da comercialização, “todos os lotes foram liberados dentro dos padrões de qualidade estabelecidos na licença concedida pelo Mapa e no controle interno de qualidade”, onde seguiu os trâmites para o registro e validação nas pastas da Agricultura e Pecuária e da Saúde.
Para auxiliar na investigação das causas do desvio na vacina, a empresa também montou um grupo de trabalho de profissionais locais, da América Latina, global e consultores externos. A Ceva reforçou que a produção segue suspensa “até que sejam identificadas as causas primárias dos desvios no teor da proteína A2 e a solução seja encontrada”.
Ao ser questionado sobre medidas e recomendações para prevenir a propagação da leishmaniose visceral canina, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) reiterou ao Metrópoles que segue “as orientações do ministério em relação ao como proteger para divulgação aos profissionais”.